Censura é algo inadmissível, abominável, execrável. Quem a determina imagina-se poderoso. Mas não raro acaba mordendo o rabo, provocando a divulgação maciça do que gostaria de banir do mapa. Uma saborosa vingança devidamente aplicada ao prefeito Marcelo Crivella, que mandou, sem sucesso, recolher o gibi Jovens Vingadores à venda na Bienal do Livro do Rio.
A publicação se esgotou minutos depois da sandice do alcaide, virou notícia e teve seus quadrinhos exibidos no Brasil e no mundo.
Além de atentar contra a liberdade de expressão e o direito do cidadão de decidir sobre sua própria vida, Crivella desrespeitou as famílias brasileiras ao usá-las para defender o indefensável. Um argumento infame que vem se tornando lugar comum a partir da ascensão do presidente Jair Bolsonaro.
Até para indicar Augusto Aras para substituir Raquel Dodge na chefia da Procuradoria-Geral da República, Bolsonaro serviu-se da tal “proteção da família” como justificativa para escolher alguém fora da lista tríplice apresentada pelo Ministério Público. Sem qualquer constrangimento, preteriu o combate à corrupção em nome de alguém contrário à “ideologia de gênero”, ao “fim da família e essas patifarias que aí estão”.
Usou raciocínio semelhante para encomendar ao Ministério da Educação uma lei que proíba a abordagem de “ideologia de gênero” nas escolas, que ele considera “coisa do capeta”, expressão utilizada em discurso na Marcha para Jesus, em Brasília.
Um diabo que o presidente deve ter encarnado ao veicular cenas de sexo explícito nas redes sociais durante o Carnaval (também em nome da proteção da família) ou quando preferiu usar escapes escatológicos diante de denúncias de descaso ambiental por parte de seu governo. Diga-se, nada muito família.
Em São Paulo, o governador João Doria aderiu à mesma rota das trevas ao recolher e mandar jogar no lixo apostilas distribuídas aos estudantes do 8º ano, por incentivo à “ideologia de gênero”, expressão deturpada por retrógrados que, maliciosamente, enxergam nela apologia aos LGTBs.
Céleres em andar para trás, Bolsonaro, Crivella e Doria desconhecem por completo as famílias que dizem querer proteger.
Segundo o IBGE, a família dita tradicional, com casais heterossexuais e filhos, há muito não predomina no país. Em mais de 50% dos lares vivem famílias monoparentais, com mãe ou pai solteiros, ou multiparentais, com mistura de filhos e pais de uma e outra união, além de parentes (avós, tios, etc.) que criam filhos de outros e filhos próprios ou adotivos de famílias homoafetivas.
Ao que se saiba, o que a maior parte das famílias quer do Estado está longe de ser qualquer tipo de tutela comportamental. Quantas delas estão preocupadas com “ideologia de gênero”, trans ou gays, meninas de rosa e meninos de azul? Elas reivindicam mais saúde, educação, segurança, moradia, temas praticamente ausentes da agenda governamental. Antes de mais nada, querem emprego e um mínimo de dignidade. Uma proteção que o governo se furta a dar.
Censura é algo execrável, inadmissível. Mas os tiros saem pela culatra. Assim foi com os generais da ditadura, que, ao contrário de calar, deram mais eco aos insurgentes, ou com o presidente José Sarney e a proibição do filme Je vous salue Marie, de Jean-Luc Godard. Ou ainda, mais recentemente, com o Queermuseum, tirado do anonimato pela proibição que se seguiu à gritaria moralista.
Animados pela onda conservadora, os castradores da liberdade avançam e vão insistir. Sempre o fazem em nome da família e da moral. Mas nunca sem resistência.
A história, ao contrário do que imaginam os protagonistas do atraso, anda para frente.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 8/9/2019.