Alberto Goldman, um artesão da unidade

A era de Aquário tinha ficado para trás. O Brasil vivia o clima do ame-o ou deixe-o do governo Médici. O “milagre econômico” entorpecia a classe média e parcelas de trabalhadores que passavam a ter acesso a bens duráveis. A ditadura vivia o seu período mais truculento, enquanto a esquerda armada, com suas ações de assalto a banco e sequestros, se isolava da sociedade. A desarticulação política se espraiava, com vários setores aderindo à tese do voto nulo para as eleições de 1970.

Não havia luz no final do túnel naqueles anos de escuridão. Para muitos, o bipartidarismo (Arena e MDB) existia apenas para legitimar o regime. O PCB, apesar de ilegal, não pensava assim. Entendia que a via institucional, por mais estreita que fosse, era o caminho para acumular forças numa estratégia de frente democrática. Em São Paulo um tecelão e ex-vereador da capital avaliou que o Partidão, apesar de debilitado pela repressão e pelo racha de Carlos Marighela, teria condições de eleger um deputado pelo MDB. Mas quem?

Moacir Longo, o tecelão, lembrou-se de um ex-aluno do Colégio Bandeirantes e agora engenheiro recém formado pela Escola Politécnica da USP, Alberto Goldman, que tinha uma construtora e começava a erguer sua carreira profissional. Goldman não foi convidado, foi intimado a ser candidato a deputado estadual, em 1970, pois era o único quadro legal do PCB filiado ao MDB em condições de concorrer e de se eleger, como de fato aconteceu.  Anos depois, já como governador, homenageou o velho camarada que lhe abriu as portas para a política com a medalha Comenda de São Paulo.

Nascia ali um dos políticos mais brilhantes de sua geração e que iria desempenhar papel importantíssimo na resistência democrática como um artesão da unidade.

Desempenhou esse papel como deputado estadual por dois mandatos (1971-1978 no MDB), deputado federal por seis vezes (1979-1986 e 1991-2006, no MDB e parte no PSDB), e como dirigente partidário. No partido de Ulysses Guimarães, não quis se filiar a uma das duas alas, “moderados” e “autênticos”, por entender que a esquerda não deveria construir uma muralha com os liberais, sem os quais era quimera pensar em um frente democrática. O caminho era o da unidade, não o da divisão.

A obstinação pela unidade o levaria a ter um papel decisivo na vitória de Franco Montoro, em 1982. Setores da esquerda emedebista defendiam que o vice da chapa fosse Mário Covas, mas Goldman entendia que Quércia deveria ser o candidato a vice porque ele e os moderados tinham capilaridade no Estado e sem o apoio deles não seria possível derrotar o candidato da ditadura, Reinaldo de Barros.

Sabia ser firme em momentos mais graves. Quando do episódio do assassinato de Vladmir Herzog, foi o porta-voz para transmitir ao então presidente Ernesto Geisel a indignação e apreensão da oposição. Sua postura ao mesmo tempo firme e moderada granjeou o respeito de Geisel.

Essa sua maturidade vinha de longe. Em 1967, quando Carlos Marighella conquistava corações e mentes de uma juventude sem perspectivas, Alberto Goldman não o acompanhou, recusando-se a aderir à luta armada. Na conferência estadual para o 6º Congresso do PCB travou um duro diálogo com Marighella, quando o velho líder comunista lhe disse que não tinha interesse pela luta parlamentar.

Sim, Goldman foi um comunista durante largo período de sua vida, mas também acreditava na democracia como um valor universal. Quando saiu do MDB, continuou tendo a democracia como um dos seus valores. É fácil entender sua opção pelo comunismo, quando da sua juventude. Seu pai Wolf Goldman, judeu e comunista, veio da pequena cidade de Opale, Polônia, para fugir dos pogroms.

A queda do muro de Berlim, em 1989, o levaria a se aproximar das posições da social-democracia. Findaria por filiar-se ao PSDB, depois de longa militância no PMDB.

Na política, Alberto Goldman foi quase tudo. Ministro do governo Itamar Franco, secretário de Estado, vice governador e governador de São Paulo.

É muito triste escrever sobre a perda de um amigo como ele. Tive a honra e o privilégio de ser companheiro de partido e do secretariado no governo de José Serra. Usufrui da sua amizade e sempre admirei sua firmeza, inteligência e caráter. Culto e profundo conhecedor da alma humana, tinha uma lucidez política invejável e que se manteve afiada até sua morte. Sempre preferiu ficar em minoria a abrir mão de suas convicções. Sim, foi minoria várias vezes na sua trajetória. Na maioria delas a vida lhe deu razão. No plano pessoal, construiu uma família amorosa e antenada com o mundo. Até há pouco tempo tocava piano e jogava basquete como poucos na sua idade.

O velho Goldman travou sua última batalha neste domingo quando veio a falecer. Fará imensa falta. O Brasil de hoje ressente-se de artesãos da unidade como Alberto Goldman, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Mário Covas e Teotônio Vilela.

Descanse em paz, amigo e companheiro.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 2/9/2019. 

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