Abusos em série

Todo abuso gera consequências desastrosas, terríveis, por vezes fatais. Do político que rouba ao policial que mata “por engano”, da criação do inimigo invisível ao crime de ódio, do acusador sem provas ao juiz que paira acima da lei. É nessa espiral de exorbitâncias que o país está metido. Uma tragédia de erros que ameaça a ordem institucional, prenunciando um futuro sombrio se não vier um rápido freio de arrumação.

O grave episódio da censura à reportagem da revista Crusoé e do site Antagonista, revertida por pressão de todos os cantos, é apenas a ponta de um novelo que vários representantes dos poderes constituídos se dedicam a emaranhar quando deviam desembaraçar. E não é de hoje.

São muitas as frentes de guerra: Ministério Público versus Polícia Federal – rixa antiga acentuada pela Operação Lava-Jato. Governo, em luta interminável consigo mesmo, versus Congresso. Congresso, em ilegítima defesa de seus corruptos, versus Lava-Jato. Lava-Jato, que se considera dona de toda a virtude, versus Supremo Tribunal Federal, chafurdado na soberba de alguns de seus ministros. Todos versus a imprensa, que também não é santa, comete abusos, assassina reputações.

Entre todas essas batalhas, as mais cruéis para o país são as protagonizadas pelo Supremo, instância máxima para dirimir conflitos, integrada por ministros que, não raro, preferem semeá-los. Guardiões da Constituição, por vezes fazem dela gato e sapato.

Uma das mais simbólicas combinações do felino e o calçado veio do então presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, que rasgou a Carta para evitar que a presidente cassada Dilma Rousseff perdesse seus direitos políticos por oito anos, como prevê a Lei Maior.

As heterodoxias se tornaram praxe em uma série de decisões monocráticas que nos últimos anos predominam no Supremo. O atraso no fim do auxilio-moradia dos juizes patrocinado pelo ministro Luiz Fux, a decisão hiper-veloz do ministro Edson Fachin de conceder perdão total aos irmãos Batista na delação contra o ex-presidente Michel Temer, mais tarde suspenso, ou a prática solitária do ministro Gilmar Mendes de mandar soltar investigados, são alguns exemplos.

No caso mais recente, o presidente Dias Toffoli achou por bem apurar ofensas à Corte consideradas criminosas. Algo justificável diante de ameaças que ministros sofreram – quando presidia o STF, Carmem Lúcia teve seu prédio em Belo Horizonte pichado, Fachin e sua família estão sob proteção policial. Portanto, cabe, sim, investigar.

Só não é explicável por que Toffoli preferiu usar o Regimento Interno para fazê-lo ao arrepio da Constituição, a qual impõe investigação criminal como prerrogativa exclusiva do Ministério Público. Ora, por que escolheu esse caminho torto? Por que não pediu à Procuradoria-Geral da República para investigar, solicitação que certamente seria atendida? Por que escolheu Alexandre de Moraes como investigador e acusador? Por que quis censurar uma reportagem que o citava sem o acusar?

Como o que começa errado tem enormes chances de terminar errado, agora será mais difícil achar o que realmente importaria nessa história: quem foi o servidor público que vazou as informações de um delator para a Imprensa, esse, sim, imputável, já que tudo estava sob sigilo. Qual a motivação dele? Erro semelhante impediu o país de saber como a denúncia contra Temer vazou justamente quando o Congresso se preparava para votar a reforma da Previdência.

Tudo colabora para que o cidadão confunda o comportamento errático de alguns ministros com a instituição na qual eles têm assento. É combustível de sobra para incendiar os cordões de #ForaSTF, para animar gente que não tem qualquer apreço pela democracia. Aqui mora o perigo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 21/4/2019.

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