Falava e tinha o encanto de seda de uma homília do Padre Tolentino. As homílias de Tolentino escutam-nas os devotos ouvidos e até as comovidas paredes da mítica capela do Rato. O perfume das palavras do falso Conde Victor Lustig, numa tarde de 1925, converteram num jardim de aromas a sumptuosa sala do Hotel Crillon, vista a derramar-se sobre a Place de la Concorde.
Nada, a não ser o comum dom da sedução, autoriza que se compare o sermão de um e o discurso de outro. Separa-os um século. Em 1925, o falso conde, filho do império austro-húngaro, estava em Paris e tropeçou numa polémica. Os jornais diziam que as autoridades francesas não tinham dinheiro para mandar cantar o ceguinho que era a Tour Eiffel. A torre fora construída para a Expo de 1899, com a condição de ser demolida 20 anos depois. E tenho de dizer isto: antecipando o que a ex-intelectualidade do ex-Bairro Alto disse das Amoreiras do nosso arquitecto Taveira, escritores eminentes como Zola e Maupassant, arquitectos, pintores, a Paris de fine bouche abominaram, em carta aberta, o aço, calhamaço, da torre ameaçadora. Fazia, juravam, uma sombra maligna à beleza gótica de Notre Dame e do Arco do Triunfo.
Um pé na penúria do Estado, outro na vergonha estética, Lustig mandou fazer papel de carta, envelopes e cartões, fingindo ser um alto funcionário do Ministério dos Correios e Telégrafos. Convocou seis sucateiros para uma reunião no Crillon. Lustig falou-lhes com a voz louçã que, tivesse-a a jovial deputada Carmelinda Pereira, outro e glorioso teria sido o futuro do trotskismo em Portugal.
Mas já me distraio, Lustig disse aos sucateiros que vinha em missão secreta do Estado francês. As finanças do ministério estavam que nem Vitor Gaspar as queria ver. Tinha de se demolir o monstro e as nove mil toneladas de ferro e aço da Torre Eiffel seriam de quem fizesse a melhor proposta. Confiava na discrição de cada um deles. O juiz Carlos Alexandre tinha, aliás, verificado a inexorável honestidade de todos.
Um cheirinho de «está aqui a fazer-se História» perpassou por essa sala onde mesmo eu já almocei a expensas do Estado francês. E não queiram os leitores saber o que um francês se arrebata quando a aveludada cauda do patriotismo lhe acaricia a pele. Mais do que todos, o espírito de André Poisson já cantava A Marselhesa. Era um jovem sucateiro, casado de fresco, a ambição a unir tanto o casal como os french kisses na cama quente da meia-noite.
Victor Lustig viu que Poisson estava a ir com a boca toda ao anzol, se me autorizam o trocadilho poliglota. Recebeu as propostas. Só abriu a do sucateiro alvo, para lhe dizer que era a melhor. Um je ne sais pas quoi fez, todavia, hesitar Poisson – a mulher dele achava tudo fácil demais. Lustig deixou-o hesitar e até hesitou com ele. Confessou ao ouvido de Poisson que era um pobre funcionário, mas dado a champanhe, caviar e outras volúpias. Não era com o salário republicano que poderia chafurdar no luxo, pediu luvas, uma pipa de massa por fora.
Poisson e a mulher sossegaram. A honesta corrupção mostrava que o assunto era sério. Deram a Lustig o vivo dinheiro das luvas numa mala, um cheque em branco para a compra, e marcou-se a assinatura da venda para o dia seguinte. O sucateiro chegou e viu-se só, numa solidão de Cristo no deserto. Ouviam-se os pingos de silêncio na alma de Poisson. Lustig já estava em Viena e Poisson engoliu e calou a infâmia para sobreviver ao vexame. A Torre Eiffel, para desgosto do nosso Bairro Alto, ainda está no sítio.
Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.