“O povo venezuelano não é mercadoria, não é produto para ser devolvido.” Ao se contrapor radicalmente ao correligionário e futuro governador de Roraima, Antônio Denarium, o presidente eleito Jair Bolsonaro demonstrou coragem ao chamar para si a solução de um problema grave. E surpreendeu pelo conteúdo de respeito aos direitos humanos, tão fora de sua praia. Merece aplausos. Claro, se não der para trás, como já ocorreu em outras questões-chave.
Na Venezuela, o regime impôs fome a 3,7 milhões de pessoas e provocou, de 2015 até hoje, um êxodo estimado pela ONU em 2 milhões, dos quais 127 mil rumo ao Brasil, colapsando a pequena e até pouco tempo pacata Pacaraima, no norte de Roraima, e também a capital Boa Vista. Expulsá-los do Estado foi o principal mote da campanha local e fez vitoriosos.
Bolsonaro prega a expulsão do país bolivariano do Mercosul a partir da cláusula democrática, que não comportaria o governo de Nicolás Maduro. E a criação de campos de refugiados, administrados e custeados pelo governo federal, além de maior controle de fronteira: “Tem gente que está fugindo da fome e da ditadura e tem também gente que a gente não quer no Brasil.”
O presidente eleito não antecipou regras para impedir a entrada dos que “a gente não quer”, mas sua postura diante da insistência de Denarium de fechar as fronteiras e embarcar os venezuelanos de volta é um alento. Especialmente quando o nacionalismo xenófobo cresce no mundo, estimulado por Donald Trump, de quem Bolsonaro é fã confesso.
Os fortes movimentos migratórios e a crescente resistência a eles integram os alertas da ONU no ano em que se comemora o septuagenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 10 de dezembro de 1948. A caravana dos 10 mil que em pouco mais de um mês cruzou os 1.500 quilômetros da América Central e México, a maioria deles a pé, para chegar aos Estados Unidos, os quase 2 mil mortos nas águas do Mediterrâneo e os mais de 3 mil refugiados confinados desde 2013 nas ilhas australianas de Nauru e Manus, à espera de cidadania, são apenas alguns exemplos.
Miséria, perseguição religiosa e política, repressão, intolerância quanto a gênero, atentados à liberdade e à vida compõem o escopo de um planeta que ainda convive com índices de violência galopante, como os registrados entre nós, e outros absurdos, como a limpeza étnica em Mianmar.
No Brasil, o histórico de declarações homofóbicas, racistas e misóginas de Bolsonaro gerou temores quanto à observância das 30 cláusulas que compõem a Declaração de 1948.
A começar pelo slogan “direitos humanos para humanos direitos”. A frase, escrita em seu programa de governo, confere maiores direitos e poderes aos “humanos direitos”, contrariando o princípio básico da igualdade de todos. Bonitinha do ponto de vista marqueteiro, e perigosíssima, é ela que dá sustentação ao “direito” de possuir uma arma de fogo e, por consequência, de atirar e matar. Pior: quem são e quem define quais são as pessoas “direitas”? E as demais? Suprimem-se os direitos delas?
Mais do que incivilidade, a premissa estimula a barbárie.
Fica a torcida para que a inspiração humanitária do ex-capitão em relação aos refugiados venezuelanos se reproduza em espectros mais amplos. Basta ter a mesma coragem de se contrapor à frase idiota e apelativa usada durante campanha eleitoral e postar-se em favor do entendimento universal sobre os direitos humanos. Ainda dá tempo.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 25/11/2018.
Tempo claro que dá. Mas haverá vontade? Haverá força para se contrapor à bancada evangélica? Para ignorar o triste olavismo? Como disse a Dorrit Harazim em seu artigo de hoje: Oremos…