Pum, pum, estás morto

Que bem que nós sabíamos morrer! Tínhamos aprendido a morrer com os índios, os mexicanos e os bandidos de mil westerns, com os piratas de cem filmes de capa e espada, com os filisteus que Sansão arrasava com a sua força de braços.

Animava-nos a pura metafísica da infância. A vida já era nossa, queríamos era experimentar a morte. Ora, morrer não era só tombar no chão. “Mata-me”, pedíamos, e havia sempre um amigo que alçava o arco e nos atingia com uma flecha ou puxava do coldre um colt prateado e “pum, pum, estás morto”. Morríamos então com a mesma imaginária sabedoria do professor Agostinho da Silva, esse cascadeur filosófico agora esquecido.

Não bastava cair, era preciso cair redondo. Caíamos impregnados do perfume de um verso mexicano do ciclo Nauatle: “Não foi para viver que viemos sobre a terra.” O corpo desabava sobre a areia vermelha do terreiro do velho Amado, mesmo ao pé da Churrasqueira, ou no areal abandonado das traseiras da farmácia Luanda. Mordíamos o pó e rodávamos três vezes, para morrermos de barriga para o ar, um último estremeção das pernas, um esgar de pessoano sofrimento e o derradeiro suspiro. Podíamos morrer rodando quatro vezes e ficando de borco, nariz e lábios enfiados na poeirenta cauda da terra – mas era considerado um exagero, um exercício de overacting como mais tarde a vida em pé nos ensinaria.

Não foi no grande cinema que aprendemos a admirável arte de morrer. Ninguém aprende a morrer com Orson Welles ou o Citizen Kane – falta até saber se se aprende a viver. Mas era do esticanço mortal que eu falava. Aprende-se a morrer em filmes humildes, uma pradaria, um cavalo e uma Winchester, aprende-se a morrer com um escravo como Spartacus. Aprende-se a morrer com gangsters: os de Coppola e dos Padrinhos aprenderam a morrer com o James Cagney dos “Roaring Twenties”, caído na mantilha de neve que afaga a escadaria de uma igreja.

Quando é que desaprendemos de morrer? Como se tivesse acabado de beber um fragmento de infância, deixei-me morrer quando a minha filha era pequenina. Tombei (esta é tua, Zé Victor!) como a gazela de Catete atingida na graciosa corrida. Arranquei à minha filha o cristalino e fresco riso. Mas todas as canas do meu corpo estalaram de vida magoada. A dor que é deixar-se um tipo morrer, quando já só está vivo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso

manuel.s.phonseca@gmail.com 

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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