O ópio do artista americano

O que se escreve no que se escreve? O que se filma no que se filma? O que vemos quando vemos o sexo de Basic Intinct? Joe Eszterhas, autor do argumento desse filme, disse, num parágrafo cheio de inveja, que vemos a juventude de Sharon Stone.

Stone fez o filme por pouco mais de um dólar. Vá lá, recebeu à volta da migalha de um milhão, mas sem a platónica alegoria do cruzar e descruzar das pernas dela, Basic Instinct não chegaria aos mais de 300 milhões que tilintaram das bilheteiras de todo o mundo.

Ora, se o ódio ao dinheiro é o ópio do artista europeu, o funesto amor à finança é religião e ópio do artista americano. Para fazer Basic Intinct II, Stone pediu tudo e um par de botas. Pediu tudo: um jacto particular para as viagens, um descapotável com chauffer não-fumador, um Cadillac para o treinador de Pilates, três nannies para cuidarem do filho adoptivo, vários guarda-costas armados, e uma caravana privativa com luxos de hotel só para os descansos dela. Mais uma tonelada de dólares.

Então e o par de botas? Além do contrato ter uma frase de galopante elitismo – “Ninguém pode ter acomodações melhores” – Stone aprovava realizador, argumentista e actor masculino. Chumbou logo Benjamin Bratt por o achar péssimo e chumbou Eszterhas como argumentista apesar de – ou talvez por – certas e satisfeitas intimidades do passado.

Em Sliver, Sharon Stone recusou fazer uma cena hardcore de banho e masturbação. “As mulheres não fazem a coisa assim.” Philip Noyce, realizador, insistiu que devia ser como Eszterhas escrevera e Stone levou os dois à suíte dela. Atirou Eszterhas ao tapete, arrancou-lhe a camisa e virou-o de costas, dando-lhe uma massagem de pernas e ancas ondulantes. Eszterhas sentiu o que sentiu, e foi sensível à ausência de uma certa peça de lingerie, suprema elipse de Basic Instinct. A acuidade da explicação de Stone convenceu o arregalado Noyce: filmou-se como ela queria e sabia que se devia filmar.

Eszterhas jura que há nisto qualquer coisa de primevo. As audições da jovem Stone como modelo e como candidata a actriz, as noites em discotecas de sombras e luz negra de Milão, Buenos Aires, Nova Iorque ou Miami deram-lhe o conhecimento do poder e o gosto do poder. Disse um agente: “Metam a Sharon sozinha numa sala com um produtor e ela fecha negócio.”

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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