Todos concordam num ponto: o país está sem rumo e já faz muito tempo.
O mundo mudou, a sociedade mudou, mas andamos em círculos, perdendo, mais uma vez, o bonde da história. Os presidenciáveis e seus partidos não disseram até agora a que vieram em matéria de apresentar um projeto para a nação. Nesse deserto de idéias, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é exceção. Em seu novo livro, Crise e Reinvenção da Política, ele descortina os caminhos que podem levar o Brasil a um novo patamar civilizatório e deixar para trás a maior crise de sua história.
A sociedade contemporânea, segundo o ex-presidente, distingue-se de sua antecessora, a sociedade urbano-industrial, em suas formas de sociabilidade bem como em suas crenças e valores. Em vez de ser as “classes sociais” o motor exclusivo da história, ganham relevância os “movimentos de cidadãos” e o fato de que “mudanças duradouras requerem a institucionalização de novas práticas e valores”. A partir daí FHC apresenta um roteiro para enfrentar o grande desafio da política democrática nos tempos atuais: a reconexão entre o “mundo da vida e da sociedade” e o “mundo das instituições e do Estado”.
A reconexão passa por reconhecer que as pessoas são portadoras de direitos e que é necessário encontrar o terreno comum (common ground), em uma sociedade fragmentada. Ou seja, em “encontrar o terreno público ou privado, no qual o interesse das pessoas se encontra e em nome do qual um país cria um destino nacional”. A nova agenda é definida pelo que une os brasileiros, tanto em questões concretas – segurança, previdência, meio-ambiente, saúde, educação, entre outros – mas também nos valores da “liberdade, igualdade, dignidade e solidariedade”.
Fernando Henrique valoriza não apenas nos valores que a humanidade persegue desde a Revolução Francesa, mas também em princípios caros à social-democracia: “uma agenda progressista e contemporânea para o Brasil deve ser libertária em relação aos temas comportamentais e, decididamente, social-democrata no que diz respeito às questões distributivistas”. É como se estivesse mandando um recado direto para seu partido.
Identifica também os agentes da mudança e os que a ela se contrapõem. Os primeiros seriam um bloco popular, democrático e progressista, formado por partidos, setores da sociedade e movimentos sociais. As forças resistentes seriam a velha esquerda com suas idéias ultrapassadas e a direita autoritária e chauvinista.
É na articulação sociedade-mercado-Estado que ressurge um Fernando Henrique social-democrata até a medula. “A economia é de mercado, a sociedade não”.
Critica as corporações, os privilégios estatais, a distribuição regressiva da carga tributária, o crédito subsidiário às empresas amigas do rei. Reafirma o papel do Estado na proteção aos mais carentes, seu papel de regulador do mercado e provedor de serviços públicos de qualidade.
E é avassalador na crítica ao ultramercadismo: “No embalo da crítica à corrupção e à ineficiência do Estado, vem ganhando corpo uma visão ultraliberal que defende que quanto menos Estado, melhor; o mercado seria competente não apenas para gerar emprego como também para prover a sociedade com bens públicos… Essa postura simplista se esquece que nem mesmo na mais liberal economia do mundo, a americana, o mercado foi capaz por si mesmo de prover a sociedade dos bens necessários. Além disso, o mercado acentua desigualdades preexistentes ou cria novas. O papel dessa correção é do Estado”.
Fernando Henrique descortina um alentado caminho para a reinvenção da política. E o faz como agente político da mudança, como deixou claro ao citar Marx: “os filósofos apenas interpretam o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 2/5/2018.