Ganhei um par de chuteiras quando tinha uns 5 ou 6 anos de idade. Lindas chuteirinhas nos mesmos moldes das profissionais, de adultos, com os cadarços grandes, as traves muito fortes.
Foi um presente do meu irmão Arnaldo, numa tentativa mais que óbvia de fazer o fedelho chato gostar de futebol.
Minhas chuteirinhas jamais deram um chute a gol. Acho mesmo que minhas chuteirinhas jamais encostaram em uma bola.
Usava, muito feliz, minhas chuteirinhas dentro de casa, nossa casa na Rua Magnólia, acho que 227, no Pedro II, enquanto me divertia fazendo as coisas de que mais gostava– entre elas olhar gibis, histórias em quadrinhos, revistinhas do Pato Donald. Jamais jogar bola.
Essa é uma das minhas lembranças da infância mais profunda: eu de chuteiras, limpinhas, novinhas, batendo nos tacos do chão, fazendo um barulhinho, enquanto olhava histórias em quadrinhos. Teve uma fase em que resolvi picotar as revistinhas, cortar quadrinho por quadrinho num desenho ilógico.
Picotava as revistas, cortava quadro por quadro, enquanto batucava no chão com as chuteirinhas com as quais o Arnaldo esperava que eu fosse jogar bola.
Não jogava fora os quadrinhos cortados um a um. Que isso. Jamais fui de jogar coisas fora – muito ao contrário, sempre fui de juntar, colecionar. Guardava os quadrinhos picotados em uma caixa, um baú do tesouro.
Desenvolvi, naquela mesma época, a ciência de decorar os números das revistinhas do Pato Donald. Outra de minhas lembranças da infância profunda é que os mais velhos – minha mãe, às vezes o próprio Arnaldo – expunham às visitas, como um domador de circo expõe um chimpanzé bem treinado, a capacidade fantástica de memorização do pirralho.
Mostravam uma capa de uma das revistas da minha coleção, e eu dizia qual era o número dela. Batia com as traves das minhas chuteirinhas no chão, e dizia o número da revista cuja capa me era exposta.
Outra das minhas brincadeiras preferidas era colecionar caixas de fósforos – e transformar caixas de fósforo, uma enfiada na outra, a outra enfiada numa terceira, em um trenzinho. E ficava puxando o trenzinho pelo chão da casa.
Teve uma vez que ganhei um dinheirinho de presente de algum parente em visita. Fui até a padaria da esquina e transformei a nota ganha em uma porção de caixinhas de fósforo – tantas quanto era possível comprar com aquele numerário.
Não que ficasse o tempo todo trancado dentro de casa. De jeito nenhum. Ficava dentro de casa talvez a maior parte do tempo, mas também saía, brincava com a molecada da rua, tudo muito normal. Tive uma infância absolutamente, tediosamente normal.
Agora, a prática do esporte bretão, isso aí nunca foi meu forte.
***
Depois que nos mudamos do Carlos Prates para a Serra, do outro lado da cidade, em julho de 1957 – exatamente um ano antes de Bellini erguer a Taça do Mundo em Estocolmo –, algumas vezes fui levado a participar de partidas de ludopédio. A memória me falha, não me lembro exatamente como eram aquelas ocasiões; algo me diz que tinha a ver com a turma do meu outro irmão, Geraldo, o que vem logo acima de mim, e sempre foi bom de bola.
Jogávamos futebol num descampado que havia à esquerda da Rua do Ouro, à esquerda da Rua Ramalhete (para quem estava de costas para o cidade, de frente para a Serra do Curral), acima da praça em que, naquela época, terminava a Avenida Afonso Pena.
Ali já faz décadas passa a própria Avenida Afonso Pena, a continuação dela depois de atravessar a Contorno, e aquilo ali é bonito, chamam de Mangabeiras, é bairro finório; entre 1957 e 1961, quando morei ali na Serra, era um descampado. Um terreno em aclive – o time que jogava com o goleiro mais para o lado da cidade levava imensa desvantagem em relação ao time cujo goleiro estava mais perto da Serra do Curral, e portanto mais para o alto. Claro que se compensava tudo com a mudança dos times para o segundo tempo.
Além de ser em aclive, o terreno – terra, chão, nada tratado, nada aplainado – era bastante irregular. Havia buracos, reentrâncias, fendas.
Quando eventualmente a bola vinha dar perto de mim, havia sempre alguém do time contrário que berrava:
– “Deixa que esse aí a natureza marca!”
Jamais esqueci a frase – até porque era absolutamente verdadeira. Traduzia de forma límpida a verdade dos fatos. Não precisava alguém vir tirar a bola de mim – eu perdia a bola para o aclive, para o buraco, para o vento. Bastava algum jogador se aproximar e pegar a pelota que eu era incapaz de controlar, segurar, dominar.
– “Deixa que esse aí a natureza marca!”
Julho de 2018, o mês da Copa da Rússia
Mais uma história do Sérgio. Cada dia me surpreende com algo interessante. Este meu genro é demais. Uma delicia está lembrança da sua meninice!
Apesar de não jogar, a chuteira foi usada e apreciada em cada um de seus detalhes que muitos nunca observaram (os sons que marcavam um ritmo, que ditavam o passo da leitura ou, quem sabe até a cadência pra memorização de tudo que quisesse). Mesmo não dominando o jogo, participava, analisava, guardava histórias e, alguns anos depois, utilizava esse passado para encantar as páginas (impressas, digitais, nacionais e agora até internacionais!). É.. eles estavam certos… pode deixar que desse a natureza cuida! (E muito bem ) Orgulho de tio!
1.Deliciosas memórias. Só não me surpreendi com o uso das caixas de fósforo. Mineiro por adoção, você fazia trem!
2.Por que um cara que escreve tão bem, e tem a memória preservada, não põe tudo em um livro? Está devendo…
Hê hê… Agradeço à Dona Lúcia, à Rejane Nane Nane e ao Valdir pelos comentários… Amigos são pra essas coisas…
Valdir, um livro, não digo… Mas, ao escrever esse texto sobre as chuteirinhas, de fato me deu muita vontade de retomar meu projeto de contar uns capítulos das minhas histórias…
Tenho um quase pronto sobre meus tempos na Rua Ramalhete. Um sujeito que teve a sorte de viver de frente pra Rua Ramalhete, a rua que virou música linda do Clube da Esquina, tem a obrigação de contar aquelas histórias…
Um abraço para os três!
Sérgio
Em tempo: mineiro por adoção, uma ova. Sou mineiro. Minha família passou uns tempos em Goiás e aconteceu de eu nascer lá, mas a família voltou para Minas quando eu era bebê. Então sou goiano por acidente geográfico, mineiro de família, de criação e de direito, paranaense de passagem rápida e paulista por adoção e garantia de Green Card dado por filha e neta paulistaníssimas!
Sérgio