Um título jornalístico pode, ao mesmo tempo, expressar uma verdade mas transmitir uma idéia completamente errada dos fatos. E a questão é que o título tem mais impacto do que o texto inteiro. Muitos vezes o que fica na cabeça do leitor é o título, apenas.
O Globo deste domingo, 15 de abril, traz um exemplo perfeito:
“Em sete anos, absolvições revelam falhas da Justiça”.
Quem lê só o título pode perfeitamente sair por aí dizendo coisas do tipo “Ah, eu não falei? A Justiça falha demais. A Justiça quando não tarda falha”.
E, no entanto, não é isso que a matéria mostra. Bem ao contrário. Exatamente ao contrário.
A reportagem (de Renata Mariz) mostra que, entre 2009 e 2016, o STF anulou 9 casos em que os réus haviam sido condenados em instâncias inferiores.
Em 7 anos, o Supremo encontrou 9 erros!
Entre os 25.707 recursos extraordinários em matéria criminal julgados pelo Supremo, 9 foram acolhidos. Os outros 25.698 recursos foram negados. Não procediam. As decisões da primeira e segunda instância estavam corretas.
Em 7 anos, o Supremo encontrou 9 erros das primeiras instâncias, contra 25.698 acertos.
Houve exatamente 0,035% de erros no conjunto dos 25.707 casos.
E, no entanto, o título foi “Em sete anos, absolvições revelam falhas da Justiça”.
É de doer.
A escolha do viés do título é tão claramente equivocada que, na versão on line do jornal, no portal de O Globo, o título era completamente diferente: “Em sete anos, STF recebeu 25 mil recursos e absolveu só nove”.
Eis a reportagem de Renata Mariz:
BRASÍLIA – Condenações por sonegação fiscal, tráfico de drogas, assalto a banco, porte de arma de fogo e exercício ilegal de profissão estão entre uma minoria de sentenças anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), último degrau da Justiça brasileira, em pouco mais de sete anos. É o que aponta detalhamento feito pelo GLOBO com base nas nove absolvições registradas de 2009 a 2016, ou 0,035% dos 25.707 recursos extraordinários em matéria criminal julgados no período, segundo dados apresentados pelo ministro Luís Roberto Barroso.
O mapeamento dos casos revela que pessoas foram inocentadas pelo Supremo por razões alheias ao Judiciário, como mudanças na lei, mas também por erros graves das instâncias inferiores, como falta de provas válidas.
Esse foi o motivo de duas das nove absolvições analisadas. Em um dos casos, Lucimar Aparecido Cardoso e Caroline Correa Souza, condenados a mais de quatro anos por tráfico de drogas em Macatuba (SP), foram inocentados. O ministro Gilmar Mendes considerou que as provas usadas na sentença não demonstravam que o casal guardava entorpecentes na própria residência para auxiliar uma quadrilha em troca de parte da substância para consumo próprio.
Gilmar rebateu as provas consideradas pela Justiça: interceptações telefônicas, uma testemunha e confissão extrajudicial, na polícia. Ele disse “ser possível utilizar elementos produzidos no inquérito, mesmo confissões, para embasar uma suposta condenação, desde que eles não estejam isolados no acervo probatório”. E destacou que “o rompimento do estado de inocência de um indiciado, de forma que resulte em uma condenação, deve se basear em elementos probatórios concretos produzidos em juízo”.
A falta de provas também levou à absolvição de Vagner Augusto Pereira. Ele foi inocentado em primeiro grau da acusação de ter roubado um banco em Belo Horizonte, no fim da década de 1990, mas condenado na segunda instância a nove anos e 11 meses. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a sentença, levando a Defensoria Pública de Minas Gerais a recorrer à Suprema Corte.
— Era um caso tão absurdo, amparado numa confissão que o acusado alegava ter feito sob tortura na delegacia, que nós decidimos levar adiante — diz Andréa Abritta Garzon, defensora que atuou no processo.
Em decisão de 2010, a ministra do STF Cármen Lúcia absolveu Vagner. Segundo ela, não houve na sentença que o condenou “qualquer referência a prova colhida em juízo capaz de confirmar as realizadas na fase inquisitorial”. “Ao contrário, o tribunal de origem asseverou expressamente que ‘algumas das provas aqui colacionadas, por razões diversas, não passaram pelo crivo do contraditório’”, assinalou a presidente do STF.
Em três casos, houve um aparente desconhecimento das leis nas instâncias inferiores. José Francisco Leite, de 56 anos, até tentou avisar que, mesmo sem carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, poderia atuar como assistente em juizados especiais federais, conforme permissão expressa numa lei federal. Não adiantou. A magistrada que conduzia a audiência, na qual Leite fazia a defesa de um parente, disse que o denunciaria por exercício ilegal da advocacia.
— Eu falei: Excelência, tem até uma cartilha sobre o funcionamento dos juizados especiais. Nessa hora, ela me mandou calar a boca e disse que eu poderia sair preso de lá. Foi uma humilhação — lembra Leite.
Apesar de aborrecido, Leite diz que deixou a audiência tranquilo por considerar a tal denúncia “natimorta”. Meses depois, surpreendeu-se com um chamado para depor na polícia. O processo foi remetido à Justiça do Distrito Federal, onde Leite acabou condenado em primeira e segunda instâncias. Ele conta ter sido aconselhado a aceitar a pena alternativa à prisão, mas quis levar adiante os recursos. Perdeu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e apelou ao Supremo. Na sentença, o ministro Luiz Fux absolveu Leite, lembrando que uma lei de 2001, portanto oito anos antes da denúncia, “faculta às partes a designação de representantes para a causa, advogados ou não, no âmbito dos juizados especiais federais”.
Apesar de não ter ficado preso devido à pena baixa, Leite lembra o quanto é difícil dormir com uma condenação criminal:
— Foram quatro anos com meu nome jogado no rol dos culpados. Falta ao Judiciário ter um mínimo de cuidado com os processos, analisando caso a caso. Mas a Justiça é apenas “carimbatória” no país.
Os dados de absolvição apresentados por Barroso não incluem habeas corpus, meio pelo qual pedidos variados da defesa também são deferidos no Supremo. Barroso diz saber que a taxa de sucesso, embora não haja pesquisa para quantificar, é maior no caso de habeas corpus do que nos recursos extraordinários. No entanto, o ministro defendeu que o índice de 0,035% de reversão da condenação no universo pesquisado não justifica modificar a jurisprudência atual, que permite a prisão após segunda instância.
O defensor público Rafael Raphaelli, que atuou em dois dos nove casos de absolvição, contesta o raciocínio. Ele ressalta que os números seriam mais expressivos se a análise levasse em conta o julgamento de habeas corpus. E considera absurdo que pessoas tenham de chegar à mais alta Corte para provar a inocência.
— Era para ser nenhum (caso). Ter nove casos na última instância não revela que são poucos, revela que há falhas — afirma o defensor público.
15/4/2018