O rio Tejo é um rio manso. Brando como se dizem ser os costumes portugueses. O maior mal que talvez o rio Tejo seja capaz de fazer é inundar, o que, diga-se, está na telúrica natureza de um rio.
Já estive horas de olhos postos no Tejo e não sou capaz de o antropomorfizar. Não lhe vejo a esplêndida e selvagem crueldade ou a ruidosa alegria inocente que se via nos olhos do Kwanza, poderoso rio que desagua a uns 70 quilómetros a sul de Luanda. O Kwanza tanto é um negro polifemo de grande olho na testa, como nele e dele podem imergir mil olhos maldosos como os olhos de jacarés. Ninguém em seu vigilante juízo consegue fechar os olhos a olhar para o Kwanza.
Mas estou a acobardar-me para não revelar a fraqueza que me consome: nunca estive no rio que mais amo, o rio que Martin Sheen sobe no Apocalypse Now. Nem sei se é um rio real ou dois ou três pelos quais a loucura de Francis Coppola tenha nomadizado as filmagens. Eu tenho raiva de Martin Sheen, dessa voz off com que ele nos fala, subindo o rio, com a mais odiosa das missões, matar o camarada, o herói, que é Marlon Brando. E aquele rio, todo vestido de selva, está, como ele, grávido de metafísica e maldade. Tenho uma pequenina inveja europeia desse rio exógeno e dessa guerra bárbara, ditada só pela alegria do sangue e pelo sopro vitalista do bicho inumano que também somos.
Estava eu neste transe espiritual schwarzenneggeriano, e logo descubro que a minha fraqueza é a mesma fraqueza de Sheen. Na primeira Guerra do Golfo, veio, católico fervoroso e anti-Bush, com a família e um amigo, a Roma, falar com a Madre Teresa. Pediu-lhe para convencer o Papa a constituir um tribunal internacional que ordenasse aos beligerantes o fim da guerra. A irmã perguntou-lhe com candura: “E eles obedecem?”
Recebido o recado, a pequenina Teresa abençoou a mulher e os quatro filhos de Sheen e deu-lhes medalhas de santos. Martin Sheen lembrou-se então de que Marlon Brando vivia um momento angustiante. E pediu à Madre Teresa que lhe desse mais uma medalha para esse amigo que era um actor famoso. “Quem é?”, perguntou ela, curiosa. “Marlon Brando”, disse ele. “Ah. Nunca ouvi falar.”
Sheen levou a medalhinha a Brando e contou-lhe a história. Diz Sheen: “Confesso que Marlon ficou lavado em lágrimas. Significou muito para ele.”
Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.