Keaton e Chaplin na Almirante Reis

A mulher madura ria-se, de perdida, os dois pés assentes no lancil do passeio da Avenida Almirante Reis. De pés no lancil do passeio, na Almirante Reis, nunca mais ninguém, mulher ou homem, se rirá tanto e tão perdidamente. Deixemos a mulher madura, da pequena burguesia ascendente dos anos 80, rir-se. Voltaremos a ela quando consiga falar.

O melhor riso que o cinema já teve deve-o à crueldade e ao lirismo com que o fizeram rir Buster Keaton, a que chamávamos O Pamplinas, e Charlie Chaplin, dito Charlot.

O humor de Keaton era físico e doía. Os pais, artistas cómicos, ao descobrirem que Keaton tinha mais cálcio nos ossos do que há volfrâmio nas Minas da Panasqueira, atiravam com os três ou quatro anos dele pelas escadas abaixo nos números de vaudeville para gáudio do excelentíssimo público. Estava traçada a linha de crueldade a que o inescrutável Keaton nunca mais fugiria.

Chaplin é feito de outra matéria lírica. E, como sabem todos os que já o morderam, o lirismo não tem ossos. Charlot era dúctil e bailarino, até mesmo quando fez das suas nádegas as nádegas de Hitler batendo, com um leve e altivo espasmo delas, o globo terrestre que o Führer sonhava dominar. Está no Great Dictator e é a única chulipa de cu da história do cinema.

Jamais, e vice-versa, direi que o humor de Keaton é superior ao de Chaplin, e desculpem-me ter desperdiçado antes o vice-versa que devia estar aqui. Mas uma coisa é o gosto e outra, os ossos que se têm. Falta-me o cálcio de Keaton e, homem pequenino, mais do que velhaco, calhou-me ser bailarino. Gosto de gostar e gosto de me rir, a começar por esse momento fundador, no Liceu Salvador Correia, em Luanda, quando a temível professora de matemática, dita Joana Bocarra, entrou na sala e vendo toda a turma de pé para a receber, gritou lá para o fundo, para mim, “O menino levante-se”, estando eu em pé, tanto quanto em pé se podia estar.

E volto à mulher que ri. Dez segundos antes, uma motorizada estridente passara por ela e, de esticão, arrancara-lhe a bolsa que levava ao ombro. A mulher só conseguia rir-se. E explicou: “Não consigo deixar de ver a cara do tipo quando abrir a mala: só lá está o frasquinho com as minhas fezes para análise.” Era, diga-se, um tempo em que o Serviço Nacional de Saúde prescrevia análises magnânimas.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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