Impedir a prisão até a quarta instância é crime

É uma excrescência, um absurdo, impedir que seja presa uma pessoa que já foi condenada em duas instâncias.

Só no Brasil uma pessoa condenada em duas instâncias pode continuar apelando em liberdade para a terceira e a quarta instâncias.

E, mesmo assim, essa excrescência, esse absurdo, só vigorou no Brasil durante 7 dos últimos 77 anos.

E todos sabemos – é o óbvio, é absolutamente auto-explicativo – que só os muito ricos podem contar com advogados caros e espertos capazes de levar os casos de seus clientes ao tribunais superiores em Brasília.

A garantia de liberdade para condenados em primeira e segunda instância até que o Supremo Tribunal Federal se pronuncia é não apenas uma excrescência, um absurdo – é também a legalização da injustiça social.

Em 193 dos 194 países da ONU, as pessoas condenadas em primeira ou no máximo segunda instância são presas. Essa informação é do jurista João Paulo Cavalcanti e está no artigo de Merval Pereira publicado em O Globo nesta quarta-feira, 21/3.

E artigo de Carlos Alberto Sardenberg nesta quinta, também em O Globo, mostra que, em 70 dos últimos 77 anos, o direito penal brasileiro determinava a prisão dos condenados em primeira ou no máximo segunda instância.

Esperar até a quarta instância para prender condenado pela Justiça é mais que excrescência, absurdo, legalização da injustiça social. É crime.

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Querem uma outra Lei Fleury

         Por Carlos Alberto Sardenberg, O Globo, 22/3/2018.

Resumindo a história: de 1941 a 1973, a regra no Brasil era a prisão após a condenação em primeira instância; de 73 a 2009, vigorou a prisão em segunda instância; de 2009 a 2016, o condenado só poderia ser preso depois da sentença transitada em julgado, ou seja, após a última das últimas instâncias; de 2016 até hoje, voltou-se à norma da execução da pena após a segunda instância.

Portanto, em 70 dos últimos 77 anos, o direito penal brasileiro determinava que o condenado seria preso após a primeira ou segunda instância. Essa é a tradição que, aliás, se alinha com o sistema vigente nas democracias. Já viram no noticiário ou nos filmes americanos: o condenado sai do tribunal já algemado, condenado pelo juiz de primeiro grau.

A exceção foi o curto período de sete anos em que prevaleceu a prisão só em última instância — situação que favoreceu um sem-número de condenados ricos e bem posicionados no mundo político, que podiam pagar a advogados e recorrer até o Supremo Tribunal Federal, passando antes pelo Superior Tribunal de Justiça. Um processo longo, que permitia a prescrição e, pois, a garantia de que especialmente os crimes do colarinho branco jamais seriam punidos.

Voltar a essa norma de exceção não beneficiaria apenas o ex-presidente Lula, mas o amplo número de empresários, executivos, altos funcionários e políticos que já foram apanhados pela Lava-Jato ou que estão na sua mira.

Mas não seria o primeiro casuísmo nessa história.

A primeira virada de mesa se deu em novembro de 1973. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops, conhecido chefe da repressão, torturador, estava para ir a júri. Pronunciado ou condenado em primeira instância, iria para a cadeia. Aí o regime militar determinou, e o Congresso aprovou a Lei 5.941, que manteve a prisão após a condenação ou pronúncia para o júri, mas abriu a possibilidade de concessão de fiança com a qual a pessoa apelava em liberdade.

Não por acaso, ficou conhecida como Lei Fleury.

Em 1988, veio a nova Constituição, dizendo que a presunção de inocência vale até o trânsito em julgado da sentença.

Claro que se estabeleceu uma questão: se há a presunção de inocência, a pessoa pode ser presa antes de se esgotarem todos os recursos? Pois o STJ respondeu que pode, com a Súmula 09. Ali a Corte disse, em resumo, que a prisão do condenado em segunda instância não ofende a presunção de inocência. A regra, portanto, era clara: para apelar, a pessoa precisava iniciar o cumprimento provisório da pena.

E assim foi até 2009, quando o STF mudou o entendimento e estabeleceu o direito do condenado em segunda instância de recorrer em liberdade.

Mudou por quê? Doutrina ou casuísmo?

Era a época do mensalão, esse julgamento extraordinário, que começou a punir e colocar em cana o pessoal do colarinho branco. Quem liderou a mudança no STF foi o então ministro Eros Grau, que hoje se arrepende. Conforme registramos em nossa coluna de 1º de março, ele comentou em debate recente: “Agora, neste exato momento, eu até fico pensando se não seria bom prender já na primeira instância esses bandidos que andam por aí”.

Foi em 2016, na era da Lava-Jato, quando se expôs o tamanho da corrupção e o grau de envolvimento da política e dos negócios, que o STF, pressionado pela conjuntura, voltou à regra pela qual a prisão pode ser decretada após a condenação em segundo grau. Foi um placar apertado, 6 a 5.

Pois a Lava-Jato avançou, prendeu um monte de gente. Agora, quando chega a vez de Lula, cresce o movimento para o STF mudar de novo e voltar à norma de exceção que vigorou entre 2009 e 2016. Mas não é só por Lula, claro.

A mudança na regra tiraria muita gente da cadeia e impediria que outros tantos fossem levados a ela no futuro. Isso inclui, por exemplo, o presidente Temer, atuais ministros e parlamentares, hoje protegidos pelo foro privilegiado mas que estarão na chuva quando terminarem seus mandatos.

Proteger esse pessoal, com uma mudança de interpretação no STF, isso seria a exceção, uma outra Lei Fleury.

No mundo democrático, civilizado, a norma dominante determina a prisão após condenação em primeira ou segunda instância, como foi no Brasil durante 70 dos últimos 77 anos. É sustentada pela boa doutrina.

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Em tempo: obtive as informações históricas e doutrinárias para esta coluna junto a duas fontes especiais, o ministro aposentado do STJ e professor de Direito da USP, Sidnei Beneti, e o advogado e ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho. Claro que a costura e os comentários correm por minha conta e risco.

22/3/2018

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