Tenho uma saudade estrábica da missa de sábado às sete da tarde. Toda a gente sabe que a saudade tem problemas oftalmológicos, mas quem é que ainda sabe o que era a missa de sábado, que já valia como missa dominical, abrindo-me as portas a um domingo inteiro de praia, colonial e tropical, na Ilha de Luanda, ou nos mangais do km 36, antes do Miradouro da Lua?
Era católico, já tinha deixado de acreditar em Cantinflas, esse cómico pobre, paupérrimo, que me latino-americanizou a infância, mas ainda acreditava devastadoramente que Deus era Amor, uma espécie de Eusébio cósmico, com dias de John Wayne para pequenos ajustes nas maldades do mundo.
Eu teria, então, 15 anos, e era incapaz de mentir. Não vos vou mentir agora, a um passo da terceira idade: não é da missa que tenho saudades. Sim, ao contrário das missas de Coppola, no The Godfather, as minhas eram missas pueris, que davam uma encantadora vontade de chorar, homilias em que toda a humanidade se fundia em abraço místico e fraterno, negros e brancos, ricos e pobres – se fosse hoje, à saída da igreja, com expressivo gesto de mão, diria: “Luta de classes, toma!”
Eram missas em que, num silêncio de John Cage, uma voz paramentada nos convidava com delicadeza mezzo soprano: “Tomai e bebei todos, este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança.”
Em verdade, em verdade vos digo, não é das missas, é de mim no meio dessas missas que tenho saudades. Não pensem que fui assolado por uma monstruosa vaga de vaidade. Desse mim no meio da missa, do que tenho saudades é da dúvida.
Que triste que é, pensava eu, esta certeza de que este Deus existe. Que triste que é, repito agora, a certeza de que aquele Deus não existe. O que não consigo repetir é a exaltante e genuína dúvida desse tempo fresco e claro.
Esqueço-me de mim e lembro-me de Marilyn Monroe: quando a vemos num filme, em Gentlemen Prefer Blondes, em The Seven Year Itch, nos bonitos bocadinhos que sobraram de Something’s Got to Give, o que vemos é a dúvida. A dúvida cartesiana, a kierkegaardiana, mesmo a dúvida toda molhada de certezas de Wittgenstein, nenhuma tem a tão frágil e palpável beleza da dúvida que sacode as ancas de Marilyn e que ela tenta desfazer a golpes de riso. Aprendi com Marilyn: ou a dúvida fica infantil ou já não é dúvida, é só glaucoma.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.