As coisas da cabeça da gente. Outro dia me ocorreu, e ficou pipocando na minha cabeça, como é inteligente, gostosa, irônica, bem humorada, bem feita, bem sacada, a letra de “Back in the USSR”.
Coisas vêm à cabeça da gente, é normal, absolutamente normal, e não há necessidade alguma de explicar por quê. Só Freud explica, mas na verdade dane-se o Freud. Coisas vêm à cabeça da gente, do nada, “out of the blue and into the black”, como escreveu Neil Young em outra grande pérola do rock’n’roll – e, como escreveu Caetano, às vezes a gente simplesmente acorda “singing and old Beatle song”.
E, afinal de contas, estamos em plena Copa do Mundo da Rússia – portanto não há absolutamente nada estranho no fato de que, de repente, pintou na minha cabeça, e ficou pipocando, como “Back in the USSR” é genial.
A sacada, o conceito – a brincadeira, o jogo de palavras, quer dizer, o jogo de letras. A ironia de que os nomes das duas superpotências envolvidas na Guerra Fria começam com as mesmas duas letras: U.S. United States, Union of the Soviet.
Um rock de 1968, apenas cinco após o auge, o ápice da Guerra Fria, o momento em que o mundo esteve prestes a explodir com a crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, a poucos quilômetros da Flórida. Kennedy mandando a CIA tentar assassinar Fidel Castro, Nikita Kruschev batendo o sapato na mesa da ONU – não figurativamente, modo de falar, mas literalmente.
Apenas cinco anos após o mundo temer o holocausto nuclear, Bob Dylan escrever aquelas canções apavoradas, apavorantes sobre o fim do mundo, “What have you seen, my darling young one?” – e ele havia visto que uma chuva pesada, mas muito pesada ia cair, uma chuva radiativa para acabar de vez com todo tipo de vida neste planetinha ordinário.
E então os Beatles vêm cantar que “estou de volta a US, estou de volta a US, estou de volta a US” – mas não os US of A, a terra do Marlboro e da liberdade e da justiça e blábláblá (ou do capitalismo decadente, do racismo entranhado, da terrível injustiça social, como queira o freguês). Não os US of A, mas a USSR. Back in the US, back in the US, back in the USSR.
E é um rock meio pauleira, como Paul McCartney sempre soube fazer, embora os lennonistas (não confundir com leninistas) sempre insistissem em que ele só fazia silly love songs. É um rock meio pauleira, quase como “I’m down” e “Helter skelter” – e a sensação que se tem é de que há palavras demais, sílabas demais para caber naquelas notas musicais de rock meio pauleira. Uma coisa meio Dylan – sílabas demais para um número reduzido de notas musicais. Como se as palavras não parassem de sair, feito um vulcão, um gêiser, aos borbotões:
Flew in from Miami Beach BOAC
Didn’t get to bed last night
All the way the paper bag was on my knee
Man, I had a dreadful flight
I’m back in the U.S.S.R
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S.S.R
Duas siglas, duas siglas que não formam uma palavra, em que se pronuncia letra por letra, be oh ei ci, iu es es ar. Tudo cantado rapidinho, as sílabas empacotadas bem depressa dentro do rock:
Vooei desde Miami Beach pela BOAC, não dormi na noite passada, o tempo todo o livro de bolso estava no meu joelho, cara, tive uma viagem horrorosa, estou de volta à U.S. S. R., você não sabe a sorte que você tem, garoto, de volta à U. S. S. R.
Justo de Miami – não de qualquer outro lugar deste mundão véio de guerra, mas de Miami, a metrópole americana mais pertinho dos mísseis nucleares soviéticos instalados na ilha de Fidel.
Uma outra pequena ironia é que a viagem foi de BOAC, uma empresa que não existe mais. Faz anos que não existem mais a BOAC, a PanAm, a Varig. Faz anos que não existe mais a Union of the Soviet Socialist Republics.
As grandes empresas acabam, viram poeira da História. Os grandes impérios também – o romano, o otomano, o britânico, o soviético.
“Back in the USSR” continua aí.
Outro dia mesmo fomos com Marina a um show de BPC, Beatles Para Crianças, e lá estava “Back in the USSR”.
A USSR dançou, “Back in the USSR still goes on.
***
Been away so long I hardly knew the place
Gee, it’s good to be back home
Leave it till tomorrow to unpack my case
Honey, disconnect the phone
I’m back in the U.S.S.R
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S., back in the U.S., back in the U.S.S.R.!
Um momento mcartianamente lírico, um intermezzo mais suave, um largo no meio dos allegros: Estive fora tanto tempo que custei a reconhecer o lugar. Uau, beleza estar de volta em casa. Deixo pra desfazer a mala amanhã. Querida, desligue o telefone.
E em seguida vem a gostosa, deliciosa mistura de elementos dos dois países, das duas potências em guerra.
Well, these Ukraine girls really knock me out
They leave the west behind
And Moscow girls make me sing and shout
That Georgia’s always on my my my my my my my my mi-ind!
Oh, show me round your snow-peaked mountains way down south
Take me to your daddy’s farm
Let me hear your balalaikas ringing out
Come and keep your comrade warm
Ah, essas garotas da Ucrãnia me derrubam, deixam o Oeste para trás, e as garotas de Moscou me fazem cantar e gritar que Georgia está sempre na minha mente.
“Georgia on My Mind”, claro, claro. A canção clássica de Hoagy Carmichael e Stuart Gorrell, escrita nos anos 30, gravada por um bando imenso de artistas, mas em geral associada a Ray Charles, que fez uma gravação histórica, lendária, antológica – ele mesmo nascido no Estado sulista da Georgia. Georgia é a ambiguidade absoluta, porque tanto pode ser o Estado sulista da Georgia dos US of A quanto a república soviética da Geórgia, onde nasceu Josef Stálin, hoje uma república independente, é claro, de onde de vez em quando sai um filme genial como Os 27 Beijos Perdidos, um libelo anti-stalinista mais potente que os mísseis de Cuba.
No filme Amigos para Sempre/Four Friends, de Arthur Penn, o mais europeu dos cineastas americanos, os quatro amigos do título cantam “Georgia on My Mind” para Georgia, a garota linda que todos os quatro amam. Em Amigos para Sempre, assim como em “Back in the USSR”, Georgia não é um Estado americano nem uma república, soviética ou não, mas uma mulher. Conta-se que na verdade a Georgia da canção clássica também não era um lugar, mas uma mulher – a irmã de Hoagy Carmichael. Mas essa é outra história.
As garotas da Ucrânia. Poucos dias o locutor da TV disse que um jogador lá, fulano, joga na Rússia, no time tal de Kiev. Depois, seguramente advertido com algum colega, se corrigiu, lamentou ter cometido o erro terrível, Kiev é a capital da República da Ucrânia, Vladimir Putin, o atual czar, bem que faz tudo para anexar a Ucrânia à Grande Rússia; já até roubou um pedaço – mas Kiev ainda não conseguiu conquistar.
***
Mas, back to USSR, Paul McCartney termina a letra com a frase deliciosa: deixe eu ouvir sua balalaica tocando alto, venha esquentar seu camarada.
Os camaradas secretários-gerais do PCURSS e os camaradas da KGB, a polícia política, não permitiam que os discos dos Beatles fossem vendidos na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas conta-se que muitos camaradas estudantes e mesmo camaradas trabalhadores, das cidades e dos campos, operários e campesinos, adoravam ouvir os Beatles, ainda que fosse um som burguês, anti-revolucionário, anti-socialista, cheio da podridão decadente do capitalismo.
Fato mesmo é que a Praça Vermelha estava lotada, abarrotada, quando Paul McCartney fez seu histórico show em Moscou, em 2003 – e a multidão que disseram ser de 100 mil pessoas foi à loucura quando ele cantou “Back in the USSR”.
Já na canção de Gilbert Bécaud a Praça Vermelha estava fazia: “La Place Rouge était vide / Devant moi marchait Nathalie, / Il avait un joli nom, mon guide / Nathalie”. Na canção “Nathalie”, Bécaud se apaixonou pela guia de turismo que o levou para passear pela Moscou soviética dos anos 60, 70, assim como na canção Nikita Elton John se deslumbrou com a soldado soviética que tinha o nome de Kruschev e era linda como tanta russa linda, conforme podemos conferir no clipe.
De vez em quando ouço a “Nathalie” de Bécaud e a “Nikita” de Elton John, e vejo os clipes no YouTube. Mas, claro, essas canções são outra história – talvez um dia ainda escreva um texto sobre elas.
Acho que às vezes tenho uma certa nostalgia do tempo em que havia no mundo a USSR, a URSS, aquele urso grande, assustador – ou maravilhoso, o paraíso, de novo conforme o gosto do freguês. As coisas eram mais simples, ou pretas ou brancas, quer dizer, ou vermelhas ou não vermelhas.
É mais triste um mundo sem utopia. Mas isso também é outra história.
Bora ouvir “Back in the USSR”.
De uma sentada, em 11/7/2018
Aqui, a letra inteira.
Back in the USSR
(Lennon-McCartney)
Flew in from Miami Beach BOAC
Didn’t get to bed last night
All the way the paper bag was on my knee
Man, I had a dreadful flight
I’m back in the U.S.S.R
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S.S.R
Been away so long I hardly knew the place
Gee, it’s good to be back home
Leave it till tomorrow to unpack my case
Honey, disconnect the phone
I’m back in the U.S.S.R
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S., back in the U.S., back in the U.S.S.R.!
Well these Ukraine girls really knock me out
They leave the west behind
And Moscow girls make me sing and shout
That Georgia’s always on my my my my my my my my mi-ind!
Oh, Come on!
I’m back in the U.S.S.R
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S.S.R
Well, these Ukraine girls really knock me out
They leave the west behind
And Moscow girls make me sing and shout
That Georgia’s always on my my my my my my my my mi-ind!
Oh, show me round your snow-peaked mountains way down south
Take me to your daddy’s farm
Let me hear your balalaikas ringing out
Come and keep your comrade warm
I’m back in the U.S.S.R. Hey!
You don’t know how lucky you are, boy
Back in the U.S.S.R
Oh! Let me tell you, honey!
Hey I’m back!
I’m back in the U.S.S.R
Hey! Sing it with me!
Heeeeeey! Back in the U.S.S.R
Servaz, esse seu texto é um turbilhão – vibrante, avassalador. Rica experiência, mesmo para quem é da época do Elvis Presley!
Gostei imenso de ler este texto. Muito bom!