A tesoura de Grace Kelly

O dinheiro tanto move montanhas como movia Alfred Hitchcock e as personagens dos filmes dele. Por dinheiro, um antigo campeão de ténis, personagem de Dial M For Murder, manda matar a mulher, temendo que ela o deixe e leve a fortuna, trocando-o por um romancista de policiais, como romancista de policiais também era o meu amigo Dinis Machado, que muito amava a sua Dulce Cabrita.

Onde eles estejam, conto-lhes esta história, que os deliciaria. A mim, contou-ma um livro de Vincent Pinel, o monumental Le Siècle du Cinèma, que só não vem mais aqui falar connosco porque pesa uns autoritários e inamovíveis cinco quilos.

Foi em Marselha, e era 1982. Não minto se disser que estou a ver, nessa Marselha então pintada a crime, um assassino a soldo infiltrar-se numa casa onde está a mulher casada. O flagicioso vai matá-la. Foi o marido da mulher marselhesa que lhe encomendou a morte. Enquanto o assassino faz o trabalho, o marido traça, a régua e esquadro, o seu alibi. Viajou para Paris e levou a filha. Num gesto que ele imagina de altíssimo requinte, entra num cinema de Saint-Germain des Prés, e leva a filha a ver Dial M For Murder, o primeiro e único filme que Hitch fez em 3D, para mais nos arrepiarmos e sentirmos o momento em que, defendendo-se, a mulher crava uma tesoura nas costas do assassino, que a deveria estrangular. Grace Kelly, a mulher do filme de Hitchcock, salva-se.

O homem real, o francês que encomendou a morte da mulher em Marselha, cinefilamente sentado ao lado da filha, sabe que vai corrigir na realidade o que falhou na ficção. O seu sórdido plano cumprir-se-á, a mulher será estrangulada e o seu alibi, tão turisticamente artístico e afectivo, é impenetrável e indestrutível. Não contou com a vibrante energia que a cena de sobrevivência da delicada Grace Kelly transmite ao mundo sempre que um cinema a exibe. Em Marselha, a mulher casada, tomada pelo instinto de Grace Kelly, resiste e sobrevive. O assassino e o mandante são presos, subordinando-se a realidade ao que a arte lhe ensina.

Só Grace Kelly não sobrevive. Nesse Setembro de 1982, cansada talvez pela energia que sempre o artista perde quando os seus filmes passam, estampa o carro numa das altíssimas ribanceiras onde já filmara com Hitchcock. Sai do corpo a arte que salva outros corpos.

Scissors

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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