Warren Beatty travou

Gosto do erro. Warren Beatty travou. Daqui a 20 anos, destes Oscars, lembrar-nos-emos apenas disto: Beatty travou. Ia lançado como uma velha Zundap nas ruas de Luanda da minha infância e – como é que é, mano? – travou.

Warren Beatty ficou ali, a meter um dedo no envelope, como quem escarafuncha dissimuladamente a narina. Mas Faye Dunaway, pensando ser ainda a delinquente de Bonnie and Clyde, disparou. Um tiro só e os produtores, realizador e actores de La La Land levantaram-se para logo morderem o pó amargo da derrota.

Já errei. Tenho até uma certa memória sensual do erro. Um dia, representei a SIC num evento da Embaixada de França. Recebeu-me a então Conselheira Cultural. Não é que eu seja baixo (LOL, diz o Henrique Monteiro), ela é que era muito alta. Estiquei-me para os beijinhos da praxe e é sabido como os bicos dos pés são incertos. Escorreguei ou estremeci e beijei-a na boca. Nova tentativa, embaraçada, e o incerto ósculo ficou pelo canto dos lábios. Do alto da França que incarnava, a bela conselheira foi diplomaticamente compassiva e eu, reconhecendo embora a invasiva deselegância, ainda hoje não me arrependo da falta de pontaria e de, lábios nos lábios, a ter feito rir.

Mas falava dos Oscars. Não foram sempre o que são hoje. Estão a ver uma festa numa associação de bombeiros voluntários em que toda a gente se conhece e ama e se levam de casa os rissóis de camarão e o bolo mármore, que a minha irmã faz como ninguém? Eram assim os Oscars.

Lembro-me, como se fosse hoje, dos Oscars de 1932-33. Mesmo os cães e gatos de Hollywood sabiam que Frank Capra ia ganhar com Lady For a Day. Will Rogers, seu amigo, apresentava com a preguiçosa informalidade que o faria brilhar nos filmes de Ford. Anunciou o melhor realizador. “Ora aqui está uma bela surpresa. Não podia ter saído a um tipo mais simpático. Vem buscá-lo, Frank, que bem o mereces.”

Capra salta e avança. Vai a meio caminho e vê outro Frank, Frank Lloyd, a ser abraçado por Rogers. Era Capra a morder o mesmo pó em que La La Land fez a desastrosa espargata. Capra recuou, humilhado: “Foi o trajecto mais longo e triste, o mais consternador da minha vida. Ter-me-ia enfiado no primeiro buraco que encontrasse no chão.”

Lembro a Capra a mais curta e avisada anedota portuguesa: “Qualquer um se pode enganar”, diz o nonchalant ouriço-cacheiro descendo da escova do cabelo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *