À primeira vista a crise decorrente da insubordinação do general Hamilton Mourão baixou de pressão, com o oficial sendo advertido na surdina pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas. O destino de Mourão é mesmo o escaninho da reserva, para onde irá dentro de seis meses. Seu superior hierárquico preferiu agir com cautela para não o transformar em herói da caserna.
O rastilho de pólvora pode reacender a qualquer momento. A crise dormita nos quartéis, pois o caldo de cultura na qual ela foi gerada a cada dia se avoluma mais. O fato de estar contida momentaneamente não nos dá a garantia de que novas indisciplinas de oficiais de alta patente não venham acontecer mais à frente, e com maior gravidade.
É necessário ir às causas que levaram à insubordinação de um general de quatro estrelas, para que ela não se reproduza em escala ascendente.
Não se trata de defender ou justificar um ato de indisciplina incompatível com o Regulamento Disciplinar do Exército e violador de dispositivos constitucionais. Mas sim de chamar à responsabilidade os membros do Executivo, Legislativo e Judiciário, que têm falhado sistematicamente em momento tão grave, com raríssimas e honrosas exceções.
A crise de autoridade e do arcabouço institucional advindo da Nova República corrói o tecido social e não há como o mundo castrense ficar imune à onda de descrença e desencanto que varre o país. Impossível colocar os militares em uma redoma de vidro. Ou encontra-se uma saída virtuosa para a crise ou ela atingirá em cheio o mundo castrense, com consequências indesejáveis.
O burburinho dos quartéis guarda relação com a parcela da sociedade descrente da democracia e que deposita suas esperanças no salvacionismo de Jair Bolsonaro. Não é uma fração desprezível, algo em torno de 20% dos brasileiros.
Explicar o fenômeno apenas por seu viés ideológico autoritário ou pela ascensão da extrema direita em escala planetária não dá conta do que há de específico na crise brasileira. No nosso caso, o balão da nostalgia autoritária está sendo inflado pela corrupção sistêmica que desnudou a falência da chamada “classe política” e das instituições civis.
Aqui, todos falham. Falham os partidos políticos e os parlamentares que estão na política apenas para dela se servir, falha o Executivo com sua política de cooptação para garantir sobrevida ao presidente Michel Temer. Falha o Judiciário e seus membros com decisões casuísticas, como o papel do ministro Ricardo Lewandowski no impeachment de Dilma Rousseff ou o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE. Falha também o centro democrático cujo principal partido, o PSDB, teve seu presidente licenciado afastado pelo STF do mandato de Senador da República em função de um constrangedor passivo ético.
Convenhamos, é preciso muita disciplina para os militares assistirem, calados, a um ex-presidente já condenado responder a sete processos e ainda ter a possibilidade de se eleger novamente. São muitos sapos a serem engolidos: a gravação de Temer, os milhões das malas de Geddel Vieira Lima, as denúncias contra os presidentes dos principais partidos, os bilhões desviados dos cofres públicos pelos dutos da corrupção; as falcatruas da Odebrecht e JBS. Além do fato de os denunciados, na sua grande maioria, estarem flanando por aí, livres, leves e soltos.
A tentação autoritária ganha corpo porque o centro democrático também foi atingido pela crise ética. Envolvido em suas contradições, as forças democráticas não geraram, até agora, uma alternativa capaz de promover a conciliação dos brasileiros e restabelecer o princípio da autoridade.
Sem a sua aglutinação, a reconstrução do Estado e o desbloqueio da democracia serão adiados por mais quatro ou cinco anos. E o canto das vivandeiras pode encontrar eco maior nos quartéis.
Não no sentido da tradicional quartelada para a qual não há condições externas e internas. E sim pela atração dos militares para o ringue político, por meio de uma candidatura de um oficial de alta patente e da reserva. Essa alternativa era inimaginável há 15 dias, mas começa a entrar no radar.
A ideia de um candidato militar “ilibado” não é novidade no Brasil. A direita e a esquerda já tiveram seus salvadores da Pátria fardados. A primeira com as candidaturas do brigadeiro Eduardo Gomes e do general Juarez Távora. E a segunda com o Marechal Teixeira Lott.
Elas não deram em boa coisa. Levaram a disputa política para o interior das Forças Armadas, desviando-as de suas funções constitucionais, e cristalizaram a polarização ideológica típica da guerra-fria. A cisão que existia na sociedade, se reproduziu nos quartéis. Em vez de ser solução, agravaram as crises do seu tempo, geraram instabilidades, dentro e fora dos muros castrenses.
Uma eventual candidatura de um general da reserva com mais credibilidade do que o histriônico Bolsonaro terá o mesmo efeito nocivo do passado. Por sair diretamente da tropa, inevitavelmente fará ressurgir o “Partido Militar” e promoverá a politização da tropa, com os quartéis se constituindo em palanque de um Messias de quatro estrelas.
Esse é o risco maior. A palavra está com os paisanos. Quando eles vão parar de falhar?
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 27/9/2017.