Mais perdida que cego em tiroteio

Já faz algum tempo que parece claro para as pessoas com alguma informação e lucidez que o Brasil está mergulhado na mais profunda crise econômica, política e moral da sua história. Tem me impressionando, no entanto, que a imprensa está igualmente chafurdando num fundo de poço inimaginável.

E não é a crise geral em que a imprensa mundial se enfiou a partir da difusão, nos anos 90, da internet e da premissa – falsa, erradíssima, absurda – de que informação é commodity, informação é de graça.

A imprensa brasileira me parece mais perdida que cego em tiroteio.

A sensação que se tem é de que os jornais, as revistas, as emissoras de TV não estão fazendo propriamente jornalismo: estão a serviço de outros.

Os jornais, as revistas, as emissoras de TV não estão pautando os assuntos que interessam ao país, não estão pesquisando, investigando, cavando – estão simplesmente divulgando o que é transmitido a seus jornalistas por outros. O Ministério Público fornece informações, o Supremo Tribunal Federal fornece informações, a Polícia Federal fornece informações – e então os órgãos de imprensa divulgam as informações recebidas como se fossem absolutamente retratos da realidade dos fatos. Sem investigar, sem checar, sem rechecar.

Sem raciocinar.

Os jornais, as revistas, as emissoras de TV estão repetindo feito papagaios o que gente das diversas instituições estão divulgando.

Viraram grandes divulgadores, assessorias de imprensa – deixaram completamente de lado seu papel de ouvir uma fonte e depois checar com outra, e com outra, e fazer triagem entre o que é plantação e o que é informação.

Faz meses, talvez anos que o jornalismo brasileiro vem confundindo denúncia com fato comprovado.

Mas essa tendência tem piorado demais nas últimas semanas.

E pior ainda: os grandes órgãos da imprensa brasileira têm mandado às favas a absolutamente necessária separação entre notícias e opinião.

Não só têm feito o jogo dos vazadores de informação como têm feito das informações dos vazadores a versão dos fatos que eles defendem.

Neste dia 17 de junho completa-se um mês que as Organizações Globo piraram feio, piraram brutalmente, renegaram décadas de bons serviços prestados ao jornalismo e passaram a empreender uma Cruzada para derrubar o governo Michel Temer.

É uma coisa histérica, absolutamente ensandecida – desde a primeira manchete no site do jornal O Globo no final da tarde da quarta-feira, 17/5, assegurando que Michel Temer foi gravado dando aval à compra do silêncio de Eduardo Cunha, até a ridícula, jornalisticamente vexaminosa capa da revista Época que circula a partir desta sexta, 16/5, com a manchete que ocupa todo o espaço – “Temer é o chefe da quadrilha mais perigosa do Brasil”, palavras de Joesley Batista.

Ora, a gravação não comprova que Michel Temer comprou o silêncio de Eduardo Cunha. Fazer aquela afirmação na quarta, 17/5, na manchete do site, e depois no Jornal Nacional, e em toda a programação da GloboNews, e depois no jornal O Globo do dia seguinte, é mau jornalismo. É Cruzada. É campanha. É informação distorcida. Não é a verdade dos fatos.

Encher a capa da revista semanal do grupo com uma acusação do bandido Joesley Batista também não é bom jornalismo.

Até porque – é preciso repetir – não é o reflexo da verdade dos fatos.

Temer não é o chefe da quadrilha mais perigosa do Brasil.

A quadrilha mais perigosa do Brasil é aquela que enfiou o país na maior crise política, econômica e ética de sua História. É a quadrilha chefiada por Lula da Silva. Michel Temer foi escolhido pela Organização Criminosa como vice do poste – mas, desde que o poste saiu de circulação, em 12 de maio de 2016, tem feito tudo ao contrário do que o governo lulo-petista vinha fazendo. E, neste período de um ano, vem conseguindo tirar a economia do país do fundo do fundo do poço em que Lula da Silva e o poste a enfiaram.

         ***

Então temos jornais, revistas, emissoras de TV que não fazem jornalismo, e apenas divulgam informações – ou versões – que esse ou aquele grupo têm interesse em divulgar. Que misturam fatos com opinião. E que mentem. Descaradamente. Vergonhosamente.

A revista Veja, por exemplo, afirmou, na edição que circulou a partir do sábado, 10/6, que o governo Temer “acionou o serviço secreto para bisbilhotar a vida do ministro Edson Fachin”.

Na edição que circula a partir desta sexta, 16/6, Veja afirma: “Um dado é inegável. Nas últimas semanas, Michel Temer intensificou seus encontros com Sergio Etchegoyen, chefe da Abin”.

De onde se pode perfeitamente concluir que todo o resto que foi afirmado menos de sete dias atrás sobre o assunto é negável.

A IstoÉ se dedica a condenar o procurador-geral da república, Rodrigo Janot. Eu, pessoalmente, acho que Rodrigo Janot tem feito asneira após asneira – mas não acho que uma revista semanal de informação tenha que bancar uma capa assim tão opinativa contra o sujeito.

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Está muito difícil entender o país. Isso é fato.

Na minha opinião, o jornal que mais tem sido correto, lúcido, sério, nestes tempos tão duros, é o Estadão.

Tanto no noticiário quanto nos editoriais.

Ao contrário do que aconteceu durante um período, décadas atrás, a opinião dos editoriais não tem interferido no noticiário, que tem sido o mais equilibrado que tenho visto.

E os editoriais têm sido absolutamente corretos.

Um exemplo perfeito é o editorial deste sábado, 17, que transcrevo abaixo.

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         O perigo do justiçamento

         Editorial, Estadão, 17/6/2017.

Não há mal maior que possa acometer uma sociedade organizada do que a descrença no curso natural dos processos legislativo e jurisdicional, vale dizer, a perda da confiança depositada pelos cidadãos nas instituições do Estado responsáveis pela redação e pela aplicação das leis. Uma vez instalado, esse ambiente de desconfiança dá azo ao questionamento da própria legitimidade daquelas instituições, corroendo, assim, a noção fundamental de sociedade.

É a assunção coletiva do compromisso de obediência a um conjunto de normas que visam a regulamentar o comportamento dos indivíduos e o funcionamento das organizações que, precisamente, nos separa da selvageria, da luta de todos contra todos.

Ao desconhecer a competência das instituições do Estado para regulamentar e arbitrar a contento os conflitos da vida em coletividade, cada cidadão julga ser seu direito tomar para si a tarefa de legislar, interpretar e aplicar a lei, não raro combinando estas três responsabilidades. À primeira vista, pode parecer que tal primitivismo seja exclusividade de uma camada social mais simples, incapaz de compreender os mecanismos de funcionamento do Estado. Trata-se de ledo engano. A apropriação indevida dessas funções pelos cidadãos pode se dar tanto por meio da agulha tosca que marca a testa de um suspeito com a pecha de culpado como pela tinta das canetas das mais altas autoridades da República, que desvirtuam o espírito da lei para, em alguns casos, ajustá-la a suas agendas pessoais. Em que pesem as particularidades de cada caso, não há diferença ontológica entre eles.

A proximidade que há entre justiça e justiçamento se restringe tão somente à estrutura dos vocábulos. Poucos conceitos são tão antitéticos. Poucas confusões são tão perniciosas. Cruzar a linha que separa uma coisa de outra é fazer uma opção grave e consciente pelo primitivismo, é abrir mão do legado civilizatório que nos trouxe até aqui.

Não se ignora que sobre parcela significativa da sociedade brasileira paire a sensação de medo, cansaço e impotência diante de um quadro de violência que parece drenar a energia vital de cada habitante das grandes cidades do País. Some-se a isso o desalento provocado pela morosidade dos tribunais, que, ao tardarem, falham e deixam de prover justiça. Por mais sintomático que seja este quadro, entretanto, o sequestro da lei para saciar desígnios particulares não pode ser tolerado, seja em que estrato social ele se der. O desenvolvimento social de uma nação só é possível havendo a estrita observância do ordenamento jurídico e o respeito pelas instituições responsáveis por sua elaboração e garantia. É esta a matéria-prima do Estado Democrático de Direito sob cuja égide o País está amparado.

Quando todos julgam ser titulares do direito de dizer e aplicar a lei, ninguém tem razão e se tende à anomia. Ao invés de buscar o aprimoramento da lei e das instituições por meio de representantes legitimamente investidos do poder para tal, há quem prefira sujar as próprias mãos para dar vazão a uma sanha punitiva que somente um sério desvio moral pode fazer crer ser um direito a se levar a cabo. A potencializar esse verdadeiro turvamento mental, há ainda a anuência, em muitos casos, de uma plateia ensandecida que sinaliza seus polegares por meio das redes sociais, o coliseu digital.

Não menos insegurança gera para o País o comportamento dissimulado, insidioso ou mesmo arbitrário, nos casos mais graves, das autoridades que têm por imperativo constitucional precisamente a zelosa aplicação da lei. Qualquer cidadão, do anônimo àquele investido de alta função republicana, não pode arvorar-se em justiceiro ou vigilante. Quem há de controlar os vigilantes?

Como criações humanas, as instituições do Estado não são infalíveis. Estarem sob permanente escrutínio não só é legítimo, como desejado para o bom desenvolvimento da democracia. Mas uma coisa é criticar uma lei ou o funcionamento de uma instituição. Outra, diametralmente oposta, é usurpar a responsabilidade estatal e, sem freios dissuasórios, passar a punir quaisquer desvios de comportamento por conta própria. É a barbárie.

17/6/2017

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