“Tanto os velhos partidos como os novos, em que os velhos se transformaram sob novos rótulos, nada exprimem ideologicamente, mantendo-se à sombra de ambições pessoais ou de predomínios localistas, a serviço de grupos empenhados na partilha dos despojos e nas combinações oportunistas em torno de objetivos subalternos”.
Dita há exatos 80 anos, a frase cabe como luva aos dias de hoje. Com um agravante de arrepiar: com ela, o então presidente Getúlio Vargas justificava o fechamento do Congresso Nacional, ato primeiro do Estado Novo, golpe de 10 de novembro de 1937.
Com o poder de cassar mandatos, suspender eleições, vigiar e censurar a imprensa, prender comunistas – entre eles o jovem escritor Jorge Amado –, a ditadura Vargas prosperou com a conjunção demoníaca de economia em frangalhos e ausência de lideranças capazes de dialogar com a população pobre e descrente.
Ambiente similar ao que vemos hoje, ainda que as condições objetivas de agora, na economia, e, especialmente, da maturidade institucional do país, estabeleçam e evidenciem a distância histórica.
Líder inconteste da extrema direita nacionalista, Getúlio misturou seu imenso carisma a modelagens fascistas que tanto sucesso faziam na Itália de Benito Mussolini, na Espanha franquista e na Alemanha nazista.
Mas, ao contrário da ojeriza que esses ditadores provocam em seus países de origem e em todo o mundo democrático, Getúlio virou ícone de partidos ditos da esquerda nacional, que deram a ele o status de divindade – o pai dos pobres. Até os neocomunistas tupiniquins o vangloriam.
Por ignorância, má-fé, ou ambos, esse segmento apagou da história o golpismo getulista e pesou as tintas no criador da Petrobras e da Consolidação das Leis do Trabalho, editada por decreto, em 1943, com inspiração na Carta del Lavoro (1927), da lavra de Mussolini.
Pode ser coincidência – aquela que dizem não existir – ou traquinagem da história o fato de as novas leis trabalhistas, desta vez aprovadas pelo Congresso Nacional, terem entrado em vigor no sábado, um dia depois do golpe octogenário.
Presidente do país de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, único período para o qual foi eleito, Getúlio orientava-se pela premissa de que os fins justificam os meios, parâmetro usual entre populistas, extremistas e fundamentalistas. Não tinha limites. E demonstrou isso até na dramaticidade de sua morte.
Ainda hoje sua herança é disputada a tapa. Já foi pendenga entre o PDT e o PTB no período da redemocratização, está no discurso de todos os matizes, antagoniza e une extremos.
Sem tirar nem pôr, Getúlio cabe em qualquer manequim.
Lula, outrora reencarnação, e que já teria superado Getúlio segundo a sua tropa, usa e abusa das “conquistas” dos anos 1940 nos palanques e da popularidade do golpista que ele diz admirar. Na outra ponta, Jair Bolsonaro arrebata os getulistas saudosos dos vínculos do ditador com os militares, com a extrema direita e os anticomunistas.
Ambos partilham outra adoração: o modelo Ernesto Geisel.
Bolsonaro exibe a foto do general em sua sala e Lula elogia, com vigor, o modelo nacional-desenvolvimentista do penúltimo presidente militar, aplicado ao pé-da-letra por sua pupila Dilma Rousseff, com consequências nefastas para o país: recessão e desemprego recordes.
Os dois – Lula e Bolsonaro – também disputam aconselhamentos de Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento do regime militar.
Ainda que pareça estranho ao paladar e irrite aos fundamentalistas de um lado e de outro, Lula e Bolsonaro tentam cozinhar o público com os mesmos ingredientes: a unção divina de ser o salvador da pátria, o falso moralismo e o apelo por nacionalismo de ocasião. Usam e abusam do falseamento da História, dos exemplos de Getúlio, Geisel e até JK. Tudo temperado por populismo barato.
Resta saber se o eleitor vai engolir ou não essa gororoba.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat em 12/11/2017.