Por ignorância, esperteza ou má-fé, tem-se atribuído à eleição direta para presidente o status de elixir infalível, capaz de purgar todos os males que se abateram sobre o país. E, em um lastimável arremedo da História, acrescenta-se a ela o advérbio já, o mesmo usado em 1983-84, quando o Brasil lutava para emergir de duas décadas de ditadura.
Comparar os dias de hoje com aqueles é um acinte. Inadmissível até para os mais jovens, que não vivenciaram os limites e os horrores dos tempos de exceção. Quanto mais para os que combateram o regime que extirpou milhares da vida nacional, torturou e matou. Que impedia ir, vir, reunir, escrever, falar, cantar, atuar, pensar.
Longe de ser um movimento para beneficiar candidaturas de um ou outro, as diretas-já de 1983-84 pressupunham retomar direitos usurpados pelos militares. O que unia diferentes ideologias era a derrubada do regime. E, ao contrário da Rússia ou de Cuba, e das metralhadoras de José Dirceu e Dilma Rousseff, mirava-se a democracia – e a arma era o voto.
Ainda que seja um dos maiores instrumentos da expressão popular, o voto direto por si só não garante a democracia. Muito menos a liberdade e os direitos do cidadão. A vizinha Venezuela que o diga.
Desde Hugo Chávez sufoca-se qualquer um que discorde do mandatário. Criam-se distritos, juntas e leis eleitorais ao bel-prazer do presidente, convocam-se eleições a qualquer hora, muda-se a Constituição.
Ou seja: a urna tem pouca ou valia alguma se servir a casuísmos de eternos donos do poder, populistas e ditadores que nela se escoram para referendar seus desmandos.
Por aqui, as eventuais mudanças constitucionais de ocasião serviriam a propósitos igualmente duvidosos, abrindo precedentes perigosíssimos.
Em nome de se fazer o bem, como muitos creem, abrem-se janelas para o mal.
Se é urgente alterar a Constituição para resolver o pós-Temer – evento circunstancial, que duraria pouco mais de um ano se o presidente caísse hoje – quanta loucura bolivariana, fascista, de extremismos à direita e à esquerda não poderia ser feita amanhã, com respaldo em imediatismos?
Dirão alguns que o atual Congresso, com pelo menos um terço dos seus envolvidos em falcatruas, não teria legitimidade para escolher um presidente de forma indireta. Cabe a questão: e por que esses mesmos parlamentares seriam legítimos para aprovar uma emenda constitucional pelas diretas?
Agora, o tema diretas ganhou força pela fragilidade do presidente, abatido pela delação de Joesley Batista, o canalha, alcunha imposta pelo ex Lula em discurso no 6º Congresso Nacional do PT, que terminou ontem.
Aliás, Joesley conseguiu quase o impossível: ser igualmente odiado por Lula e Temer. E por todo o país, que considera excessivo o benefício que a ele foi concedido, rico, leve e solto. É o canalha que Lula mimou e a quem entregou R$ 12,8 bilhões de dinheiro dos brasileiros, via BNDES. E o carrasco de Temer, que estrangulou o presidente e o país.
Mesmo encurralado, Temer continua presidente, o que torna surrealista falar de eleições para sucedê-lo, sejam elas indiretas ou diretas.
Apresenta-se como um sobrevivente que tem conseguido, com aparelhos, manter a respiração. Perdeu fôlego no Congresso, mas não o suficiente para ser impedido, algo que pode vir – se vier – do TSE, que marcou para terça-feira, 6, o julgamento da ação do PSDB de cassação da chapa Dilma-Temer. Mas nada aponta que será condenado de imediato e, se for, que sairá rápido do Planalto, dadas as possibilidades de recursos.
Falar hoje em diretas-já avilta o movimento que enterrou a ditadura. Confunde as bolas. A não ser que os defensores da tese de eleições diretas para substituir Temer pretendam retirar o presidente à força. Aí, adeus democracia.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 4/6/2017.
A foto de Ulysses Guimarães durante o movimento Diretas-Já em 1984 é de Antonio Carlos Piccino / Agência O Globo.