Com excepção da mão que num sonho se lhe enxameou de formigas, Salvador Dalí era virgem. Já o ateu Luis Buñuel, que num sonho desatou a cortar olhos humanos com uma lâmina, nem dos dedos do pé era casto, como bem se vê em L’Age d’Or.
Foi no primeiro filme, Un Chien Andalou, surrealíssimo, que Dalí e Buñuel juntaram aqueles dois sonhos, escandalizando a tão comerciante burguesia francesa do final dos anos 20.
Dalí era virgem. Resistira aos avanços do poeta Federico Garcia Llorca, alegando não ser homossexual e antevendo que talvez doesse. Não resistiria à invasão galopante de Gala, a mulher russa do poeta Paul Éluard. Ninguém resistia, diga-se, a Gala. A tuberculose tinha-a cruzado com Éluard num sanatório suíço. Apaixonaram-se, casaram, tiveram uma filha e, por arrebatado amor ao próximo, alargaram os apaixonados eflúvios ao pintor Max Ernst, num estetizante ménage à trois.
“O que queres de mim?”, perguntou-lhe o virginal Dalí mal se conheceram. “Quero que me mates”, gritou ela. Éluard protestou e não podia ser mais explícito: “Quero-te nos meus braços, lamber-te toda, esmagar-te, fazer-te infinitamente leve, mais molhada que tudo, mais quente, mais mole, mais dura que tudo.” Pois sim, Gala não voltaria ao lar.
Buñuel conta ter recebido seis inimitáveis páginas de Dalí pormenorizando os prazeres carnais dessa primeira noite de sexo, que diz a lenda ter sido também a última.
A arte do século XX atravessou o corpo de Gala. Sem ela, o artista-espectáculo, Andy Warhol, Damien Hirst, Jeff Koons, não teria tido o embrião que foi Salvador Dalí e a sua desembestada ideia de performance. Teria sido melhor? A acreditarmos em Buñuel, com certeza que sim. Gala nunca pediu a Buñuel, como a Dalí, que a matasse. Nem era preciso. Se a tivesse apanhado a jeito, Boñuel ter-lhe-ia cortado a cabeça.
Buñuel amava um Dalí com a sua loucura de grande masturbador, sempre virgem, resistente à manifesta cobiça de Llorca pela sua lírica retaguarda. Todo o cinema de Buñuel é um manifesto anti-Gala. A sexualidade dela, com um cortejo de amantes jovens e bem pagos, que incluíram Jesus Cristo, ou pelo menos o seu terreno intérprete em Jesus Cristo Superstar, era uma sexualidade kitsch. Uma sexualidade de circo. A de Buñuel, inveterado ateu, sempre foi religiosa: “O sexo sem a religião é como estrelar um ovo sem sal. O pecado dá outros sabores ao desejo.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.