Lifeboat é um filme à deriva no mar da II Guerra. Filmou-o Hitchcock num bote onde meteu nove vidas sem destino. O caos tomou conta do oceano e no salva-vidas, no início, só está uma mulher madura e bela, cabelo, maquilhagem e jóias irrepreensíveis, casaco de arminho, esplêndidas meias de vidro. Tão certo como ser um filme de Hitchcock, uma delicada cinta de ligas mantém essas meias esticadas para que, sem dobras nem refegos, bem torneiem a bela perna.
A mulher é a mais libertina das actrizes, Tallulah Bankhead, e posso jurar que não traz cuecas. Passado em pleno oceano, Hitchcock filmou Lifeboat num tanque do estúdio, a que os actores acediam por uma altíssima escada. Todos os dias os técnicos esperavam que, degrau a degrau, Tallulah ascendesse aos céus, retribuindo com uma salva de palmas a contemplação da edénica intimidade.
Numa lógica de “há moralidade e não come ninguém”, os produtores mandaram Hitchcock cobrir, com o devido manto, a diáfana fantasia. Lá iremos. Tallulah teve, em Lifeboat, o seu momento alto no cinema. Embora americana, fora, antes, uma glória do teatro britânico. Já em Londres gostava de representar sem cuecas. Era um Brexit nas salas e o sindicato dos actores teve de regular o que se passava debaixo daquelas saias.
Também a secreta britânica, o MI5, lhe quis escrutinar o frondoso jardim. Descobriu lá, de uma vez, cinco jovens de Eton, colégio que agora formou os dois príncipes britânicos. O rendez-vous foi no selecto Hotel Café de Paris e o espião alega que ela se terá regalado, em prática imorais e antinaturais, com os cinco, como nunca Enid Blyton imaginaria.
O agente do MI5 jurou que numa só noite pararam 100 limusinas à porta do hotel e também a acusou de lésbica. Tallulah, que sempre lamentou não ter chegado a esse impertinente toque de delicadeza com Greta Garbo, foi peremptória: “Jamais me tornaria lésbica, tanta é a falta de humor que têm!”
Hollywood não foi a sua praia. Cukor gabou-lhe as altas maçãs do rosto, mas disse que a morte dela eram os olhos sem vida. Ela queixava-se do trabalho escravo: “Há seis meses que não tenho um affair. Seis meses… Quero um homem.”
Em Lifeboat, como Hitchcock queria, foi um prodígio de incongruência. As queixas da falta de cuecas não assustaram o mestre perverso: “Mas a que departamento submeter o assunto? Ao de guarda-roupa, ou ao de maquilhagem e cabelos?”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Lifeboat no Brasil é Um Barco e Nove Destinos.