Em 2005, o ano em que fez 60 anos, linda, forte, poderosa, após vencer um câncer, Carly Simon resolveu dar um tempo como compositora e fazer um disco só de covers, de canções dos outros. Gravou então Moonlight Serenade – como o nome indica, uma coletânea de clássicos, de standards da Grande Música Americana.
Aparece belíssima na capa – diante de um fundo preto, está fulgurante com um vestido de noite até o chão, brilhante como seda, azul claro.
São nada menos que 22 faixas, a maior parte standards que estão em todas as antologias dos grandes cantores de standards – Frank Sinatra, Bing Crosby, Ella Fitzgerald, Tony Bennett (acrescentar outros nomes) – e também em todas as antologias de gente mais jovem que resolveu fazer discos com a Grande Música Americana – de Willie Nelson a Linda Ronstadt, de Rod Stewart a Eric Clapton, de Art Garfunkel a Bob Dylan.
Estão lá várias das obviedades: “My funny valentine”, “Bewitched”, “I only have eyes for you”.
Artista forte, que sempre deixou sua impressão digital em tudo o que faz, aquela mulher imensa de boca sem tamanho, descomunal, Carly Simon botou ali também algumas canções que não são exatamente daquela espécie. Tem lá “Danny boy”, a canção folclórica das Ilhas Britânicas que não é da Grande Musica Americana, e ainda “The More I See”, aquele popzinho gostosinho dos anos 60 que, este, não tem patavina a ver com o resto.
É um belo disco, esse Moonlight Serenade que Carly Simon gravou no anos dos seus 60.
Mas o disco seguinte que ela fez é, na minha opinião, ainda melhor. Muito melhor.
Carly Simon pulou 2006 e, em 2007, veio com Into White. De novo, um disco de covers. Canções dos outros. Releituras. Sem se prender a um único gênero. Aberto a tudo.
É uma maravilha. Uma absurda maravilha.
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A voz dela está mais bela que nunca. 62 anos – e a voz de Carly Simon está plena, forte, como em 1971, quando lançou seu primeiro álbum pela Elektra, uma das gravadoras que depois se reuniram com o nome de WEA – e depois desapareceu.
Os arranjos são perfeitos, perfeitamente adequados a cada uma das 14 canções.
Só 14. No disco de Grande Música Americana haviam sido 22, aqui foram apenas 14 canções.
Mas que 14 canções!
Não dá para saber como foi o processo de escolha, é claro. Mas dá perfeitamente para perceber que são 14 canções que Carly Simon ama especialmente, entre tantas outras mil.
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Fiquei um bom tempo sem ouvir este disco especificamente. A rigor, tenho experimentado menos aquela coisa de ouvir disco inteiro. Por preguiça, comodidade, jeito com que a vida vai se encaminhando, acabo ouvindo hoje em dia basicamente um shuffle do que chamo a Rádio Sérgio Vaz, as 15 mil e tantas músicas que tenho no iTunes e nos iPods.
Dias atrás, no shuffle, o randômico, o embaralhado, o aleatório, tocou “Manhã de Carnaval” com Carly Simon.
Acho “Manhã de Carnaval” uma das mais belas canções de todos os tempos e lugares. De todas as que eu conheço, uma das mais belas.
“Manhã de Carnaval”, melodia Luiz Bonfá, letra Antônio Maria, teve versão em inglês, assinada por Carl Sigman. Não tem nada a ver com o poema lindo de Antônio Maria, mas é uma bela letra de música. “A day in the life of a fool”. Frank Sinatra cantou, naquele encontro com Tom Jobim, em 1967. Rosemary Clooney gravou. Cassandra Wilson gravou. Até Claudine Longet, aquela gracinha, cantou em inglês com seu pesado sotaque francês.
Meu Deus do céu e também da terra! Até o mestre de todos os meus ídolos, Harry Belafonte, gravou “A Day in the life of a fool”.
Carly Simon poderia perfeitamente ter cantado os versos que Sinatra gravou, que Belafonte gravou.
Não. Negou-se. Ela apenas cantarola, solfeja. A cantar uma letra diferente daquele poema que Antônio Maria escreveu, recusa-se a cantar letra alguma.
Não me lembrava disso. Não me lembrava, quando ouvi no iPod outro dia, que Carly Simon tinha gravado a música sem pronunciar palavra alguma.
Embasbacado, maravilhado, fui atrás do disco. Botei Into the White no player, perdão, no tocador (player é o cacete, como diria o Ancelmo Gois), e…
Uau!
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Parece que Carly Simon escolheu as 14 canções de Into the White para me agradar. Para agradar a mimzinho, pessoalmente. A besta aqui.
O disco abre com a canção que dá o título, “Into White”, que Cat Stevens gravou no seu disco mais emblemático de todos, Tea for Tillerman, de 1971 – o ano do primeiro álbum de Carly. Naquele disco repleto de canções fortes, de grande impacto, “Into White” chamou menos a atenção, de fato. Meio que quase passou despercebida. Grande idéia de Carly de a chamar de volta, de mostrar sua beleza.
Há uma homenagem a Felice e Boudleaux Bryant, o simpático, irresistível casal que compôs algumas das canções mais memoráveis dos anos 50 e início dos 60: numa única faixa, Carly Simon junta “Devoted to you” e “All I Have to do is Dream”. Uma beleza.
Há uma homenagem explícita às canções tradicionais das Ilhas Britânicas – uma extraordinária gravação do clássico “Scarborough Fair”.
Há uma homenagem a Harry Belafonte, uma deliciosa regravação de “Jamaica Farewell”. Carly ralentou o tempo, quase que exagerou no ralenteamento – mas só quase. Ficou emocionante demais, uma beleza.
Há uma Beatle song, é claro – como poderia haver um álbum de covers de grandes canções que fizeram a cabeça de alguém nascido em 1945 sem uma Beatle song? E então Carly canta “Blackbird”, assinado por Lennon-McCartney, letra e música McCartney, sem Lennon algum. A canção que iria, 49 depois de ser gravada inicialmente, no Álbum Branco de 1968, dez anos de ser regravada por Carly Simon, deixar fascinada, mesmerizada, minha neta Marina, de 4 anos de idade.
Como é um disco de homenagens de uma artista às canções que ama, há uma faixa que poderia perfeitamente estar no disco anterior, porque é uma das mais clássicas entre as clássicas da Grande Música Americana, “Over the rainbow”.
O disco fecha com uma faixa composta por Jim Parr e Ben Taylor, “I’ll just remember you”. Ben Taylor é um dos dois filhos de Carly Simon com seu primeiro marido, James Taylor.
E aí chego à faixa mais bela deste belo disco, um dos de que mais gostei nas últimas décadas.
A quarta faixa deste Into White é “You can close your eyes”, que James Taylor lançou em seu álbum de 1971, Mud Slide Slim and the Blue Horizon. Justamente 1971, o ano do primeiro disco de Carly Simon. Era o terceiro dele, o primeiro dela.
Em 1971, estavam juntos, carreiras começando, a vida pela frente.
Ele se afundaria nas drogas.
Mais tarde se separariam. Ela enfrentaria o câncer. Ele redescobriria a alegria de viver ao perceber que algumas dezenas de milhares de pessoas, num país bárbaro, periférico, não de língua inglesa, cantavam as letras de suas músicas, numa distante cidade chamada Rio de Janeiro, em 1985.
E então em 2007 Carly Simon botou os dois filhos, Ben e Sally Taylor, para cantar com ela uma das mais belas canções compostas pelo pai deles, “You can close your eyes”.
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A Grande Música Americana tem poemas extraordinários. Os letristas da GMA eram excepcionais, extraordinários.
Adoro, só para dar um exemplo, esta metideza do autor de “Our love is here to stay”:
In time the Rockies may crumble, Gibraltar may tumble
They’re only made of clay but our love is here to stay.
Isso sim é que é se considerer o umbigo do mundo: as Montanhas Rochosas podem desmoronar, Gibraltar pode cair, mas o nosso amor está aí pra ficar.
E estes versos aqui, de “But not for me”?
I’ve found more clouds of grey
than any Russian play could guarantee.
Meu, achar mais nuvens do que qualquer peça russa poderia garantir – e aí a letra estava se referindo a Tchecov, a Górki, a Turgueniév, a todos…
Ou estes aqui, de “Too marvelous for words”:
You’re much, too much, and just too very very
To ever be in Webster’s dictionary
And so I’m borrowing a love song from the birds
To tell you that you’re marvelous
Too marvelous for words
Um letrista, um sujeito que vive das palavras, dizer que não palavras no dicionário capazes de descrever a maravilha que é a mulher amada.. Ah, meu, é uma beleza.
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Versos lindos, lindos.
Mas prefiro os de James Taylor.
Desde 1971, depois de ouvir “You can close your eyes”, acredito, a cada novo dia, quando tudo parece absolutamente perdido, que, se este velho mundo ainda continua dando voltas, e se o Sol se põe, para depois aparecer de novo, então está tudo certo. Ou ao menos quase tudo certo. Ou ao menos algumas coisas estão certas.
E a gente pode cantar as canções que ama.
And you can sing this song when I’m gone.
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Carly Simon juntar os filhos para cantarem os três a canção de James Taylor é um ato quase tão belo quanto a canção em si.
Tenho admiração imensa pelas pessoas que sabem terminar um casamento sem se transformarem em inimigas, ou distantes, ou indiferentes. Que, ao contrário, permanecem juntas, amigas, companheiras.
Ouvir Carly junto com os filhos cantando a canção do ex dela, dos pais dele, me emociona sempre.
Parece até que afinal de contas não somos, necessariamente, uma raça que está aí a provar que não deu certo.
Em algum mês de 2017, já nem me lembro qual