A França nos tranquiliza – e nos apavora

Já que todo mundo (ou, a rigor, quase absolutamente todo mundo) está fazendo exegeses sobre a política francesa e seus reflexos sobre o futuro do mundo, também vou me arriscar a dizer duas ou três coisas que sei sobre o primeiro turno da eleição presidencial deste domingo, 23 de abril.

  • Não houve, ao contrário do que há gente afirmando, um grande, fantástico, assustador crescimento da extrema direita.
  • Não houve também uma derrota fragorosa da esquerda. Ao contrário do que há gente proclamando, a esquerda não foi sepultada, enterrada, liquidada.
  • Sim, houve, como já se previa, como os analistas já vinham realçando, uma acachapante derrota das forças políticas tradicionais, tanto no campo da esquerda quanto no da direita.
  • Em um movimento que tem tudo a ver com o fenômeno do item logo acima, houve, sim, como já se previa, um aumento – assustador, apavorante – de votos nacionalistas, isolacionistas, anti-Europa, anti-integração, anti-união, anti-globalização.
  • Muito dificilmente a extrema direita vai governar a França.

Justificar a primeira afirmação é a coisa mais fácil do mundo. No primeiro turno da eleição presidencial anterior a esta de agora, de 2012, Marine Le Pen, da direita radical, teve 17,90% dos votos. Agora, após cinco anos de ataques terroristas, de crescente sentimento anti-islamismo, de euroceticismo, de aumento do nacionalismo exacerbado da direita raivosa em diversos países europeus, Marine Le Pen teve 21,30%.

Não é um crescimento avassalador.

É preocupante, é apavorante? Sim, claro que é. Mas não é um crescimento avassalador, gigantesco, fenomenal.

 

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Justificar a segunda afirmação também não é difícil.

Não dá para falar que a esquerda foi varrida, destruída, acabada, extinta, quando o candidato de uma frente de esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, recebe 19,58% dos votos.

O que houve foi uma derrota acachapante da esquerda tradicional, representada pelo Partido Socialista. Benoît Hamon teve 6,36% dos votos no primeiro turno, o pior resultado obtido pelo Partido Socialista ao longo de toda a Quinta República, ou seja, desde 1958.

O esfarelamento do Partido Socialista Francês pode ser explicado por um grande conjunto de fatores, como a grande divisão interna, e não por um ou dois apenas. Mas é bom lembrar que François Hollande, o atual presidente, eleito pelo PS em 2012 com margem apertada sobre o então candidato à reeleição Nicolas Sarkozy, de centro-direita, teve a coragem de fazer uma reforma da Previdência – algo necessário em qualquer país do mundo, mas sempre violentamente impopular, que atrai os ódios de gente de todas as classes sociais ou credos políticos. Hollande acabou fazendo o governo mais impopular, com pior avaliação nas pesquisas de opinião, desde 1958.

De qualquer forma, se fizermos a soma de 19,58% de votos de Jean-Luc Mélenchon da extrema esquerda mais os 6,36% do Partido Socialista dá 25,94%, mais do que Emmanuel Macron, o centrista independente que chegou em primeiro lugar, obteve.

Então, que não se venha com essa de que a esquerda acabou, foi varrida.

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A esquerda tradicional, ou a rigor centro-esquerda, representada pelo Partido Socialista, esta sofreu derrota acachapante – mas a direita tradicional não ficou em posição muito melhor.

A direita tradicional, antes representada pela UMP, o partido que elegeu Nicolas Sarkozy para o mandato iniciado em 2012, seguindo o longo período do também direitista Jacques Chirac, agora no partido chamado Os Republicanos (LR, na sigla em francês), também se deu mal. François Fillon, que começou a campanha como franco favorito, terminou o primeiro turno em terceiro lugar, com 20,01% dos votos.

Mais que o dobro do seu opositor natural, tradicional, do PS. Verdade. Só que o candidato do PS carregava o peso de representar o partido que esteve no poder nestes últimos anos todos, que fez uma reforma da Previdência absolutamente impopular, e que amargou os piores índices de rejeição dos últimos tempos.

Fillon surfava em cima da onda de ser o anti-Hollande. Saiu na frente, no alto – mas tropeçou na velhíssima questão ética, com a denúncia de ter favorecido mulher e filhos em empregos fantasmas. Dançou.

Dançaram os dois grandes partidos tradicionais que se alternaram no poder na França nos últimos 50 anos, o da esquerda tradicional e o da direita tradicional. Pela primeira vez em meio século, as duas grandes forças que dominaram a política francesa não estarão representadas no segundo turno, no dia 7 de maio.

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Os resultados deste primeiro turno da eleição presidencial no país que inventou a noção de esquerda e direita têm um lado um tanto tranquilizador – e um lado apavorante.

O lado tranquilizador é o de que os franceses evitaram o mal maior, que seria colocar no segundo turno a extrema direita e a extrema esquerda.

Poucas horas após o fechamento das urnas, os candidatos derrotados da direita tradicional e da esquerda tradicional, François Fillon e Benoît Hamon, já declaravam apoio a Emmanuel Macron, do novato En Marche.

É muito pouco provável, muitíssimo pouco provável que Marine Le Pen vença o segundo turno, daqui a duas semanas.

Candidato radical não atrai eleitores no segundo turno. Quem agrega votos no segundo turno é o candidato que se aproxima do centro – e Emmanuel Macron é exatamente isso. As primeiras pesquisas, realizadas no próprio domingo do primeiro turno, já falavam em 62% de intenção de voto em Macron contra 38% de Marine Le Pen.

O lado apavorante desse primeiro turno é que, somadas, as duas candidaturas radicais, a da fascista Marine Le Pen e a do esquerdista radical Jean-Luc Mélenchon, beiram absurdos, loucos, insanos 40,88% dos eleitores dispostos a dizer o que querem para o seu país.

Horror, horror, horror. O país do iluminismo, o país da liberté egalité fraternité tem quase a metade dos eleitores contra a liberdade básica de ir e vir, contra a igualidade de tratamento de todos os cidadãos, e contra qualquer noção de fraternidade.

23/4/2017. (Com atualização dos números oficiais finais divulgados em 24/4.)

A foto do alto do post foi tirada do site da revista Nouvel Observateur, hoje Obs (http://tempsreel.nouvelobs.com/). A frase de Macron é mais ou menos assim: “Eu desejo ser o presidente (…) dos patriotas diante da ameaça dos nacionalistas”.

Um comentário para “A França nos tranquiliza – e nos apavora”

  1. Não se trata do retorno ao figurino do Estado de Bem-Estar Social da era do fordismo e de economias fechadas. Mas sim equacionar a grande utopia do século XXI: crescer mais e melhor, redistribuir mais e melhor. Ser mais eficiente economicamente e, ao mesmo tempo, mais igual socialmente.

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