A berlinda dos tucanos

Sem sombra de dúvida os tucanos enriquecem a ciência política com a barafunda na qual estão vivendo. Passarão anos e a academia ainda estará estudando como foi possível um partido com enorme expectativa de poder incinerar seu capital político em tão pouco tempo.

O PSDB saiu da disputa presidencial de 2014 com um patrimônio da ordem de 51 milhões de votos e com suas teses vitoriosas. Tanto que, reeleita, Dilma Rousseff ensaiou adotar, de forma envergonhada, o programa de Aécio Neves.

A hecatombe ética do lulo-petismo e os desastres de sua política econômica turbinavam a possibilidade de um tucano ser o novo inquilino do Palácio do Planalto, em 2018.

A única dúvida era saber quem. Se o próprio Aécio ou José Serra, eleito senador e dono de uma capacidade de trabalho invejável, ou Geraldo Alckmin, tido como o grande vitorioso das eleições municipais de 2016, sobretudo por ter emplacado seu candidato em São Paulo, João Doria, no primeiro turno das eleições. Além disto, o PSDB foi muito bem votado em todo o país. O horizonte sorria para o tucanato. Seu principal contendor, o PT, perdeu metade de seus eleitores na mesma eleição. E era com o PSDB que se identificavam as multidões que coloriram as ruas nas jornadas do impeachment.

Parece que foi há um século!

Um ano depois a social-democracia brasileira está no divã, dilacerada pelo passivo ético de Aécio, além de suas contradições e disputas internas. Com o tucanato balcanizado, o PSDB levou ao ar seu programa televisivo numa tentativa de se conectar com a sociedade e dar nova coesão às suas fileiras.

Sem entrar no mérito dos acertos ou erros do programa, o fato é que a crise se agravou desde exibição da peça publicitária, instalando-se uma disputa aberta entre duas linhas e uma dualidade de poder no interior do partido.

O presidente em exercício, o senador cearense Tasso Jereissati, faz movimentos com vistas à refundação da legenda, enquanto o licenciado Aécio Neves opera no fundo do palco como braço não tão invisível de Michel Temer.

Como os mecanismos de democracia interna são precários, o próprio Tasso pode ser defenestrado se vingar a pressão de Temer para Aécio reassumir o comando do partido e em seguida passá-lo a alguém mais palatável ao Planalto e ao PMDB.

Na base dessa dualidade está o choque entre dois grupos, que, caricaturalmente, podem ser definidos como “ideológicos” e “pragmáticos”. Essa divisão se manifestou com toda intensidade na votação da denúncia contra Temer e volta agora.

Em comum aos dois grupos está a preocupação com a sobrevivência em 2018. Os “ideológicos” agem também por pragmatismo ao entender como suicídio político ficar de costas para uma sociedade que tem repulsa aos métodos adotados pelo “presidencialismo de cooptação”.

Nessas circunstâncias, disputar eleições se identificando a um governo com 5% de aprovação é coisa para quem tem muito prestígio com o padroeiro das causas impossíveis. Ademais, argumenta esse grupo, o governo Temer perdeu seu ímpeto reformista, rendendo-se desbragadamente ao balcão de negócios.

Os “pragmáticos” também têm seu lado “ideológico”. Acreditam que o caráter reformista do governo Temer é maior do que seu lado patrimonialista. Como o PSDB se define como o partido das reformas, continuar na base governista seria uma questão de coerência.

Com certa dose de fé, acreditam que Temer chegará em 2018 como um cabo eleitoral de peso, impulsionado pela recuperação da economia, a queda do desemprego e o controle inflacionário. E, quando nada, o uso da máquina governamental, com seus cargos e verbas, pode ser a tábua de salvação para quem se abrigar nesta nau.

Impossível entender o case PSDB apenas com o foco em 2018, embora nova diáspora esteja se armando em função de quem será o presidenciável dos tucanos.

Desde o final do governo Fernando Henrique Cardoso o PSDB vive crises de identidade. Incapaz de defender seu legado, paulatinamente foi se afastando de seus valores, comportando-se mais como um partido social-liberal de centro-direita e menos como um partido social-democrata de centro-esquerda. Alguns de seus membros hoje chegam a flertar com a direita de valores autoritários, intolerantes e intimidatórios.

Os tucanos não inventaram e não são os principais responsáveis pelo “presidencialismo de cooptação”, embora FHC tenha sido o primeiro a reconhecer que teve de aliar com o atraso no seu “presidencialismo de coalizão”, depois deturpado pelo lulo-petismo. Mas não se posicionaram claramente contra o clientelismo e em muitos momentos nivelaram-se por baixo com forças patrimonialistas.

Ao perder substância e coerência, o PSDB afastou-se do seu eleitorado e provocou incômodo em quadros historicamente identificados com o ideário social-democrata.

O movimento capitaneado por Tasso e chancelado por FHC mira na reconciliação da social-democracia com seus eleitores e militantes. Natural que enfrente resistências e que se instale uma luta titânica em suas fileiras no momento em que não é mais possível prolongar a sua crise, sob pena de virar um ator irrelevante no enredo político do país.

A ver se o PSDB será capaz de se reconciliar com seu passado ou se passará por cisão similar à de 29 anos atrás, quando saiu das costelas do PMDB por discordar dos métodos de Orestes Quércia e José Sarney.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/8/2017. 

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