Quando se pronuncia solenemente a palavra censura quem mama são sempre os mesmos. Primeiro, os nossos censores fascistas que tanto cortavam beijos como a nua palavra liberdade, mas se deixaram enganar pelas maminhas da Romy Schneider, que desabrocharam, antes do 25 de Abril, quando o velho ecrã do Tivoli acolheu A Piscina. A seguir, recrimina-se o torpe bando americano, organizado numa Legião da Decência, que ajudou Hollywood a fazer o Código Hays. Um dos seus membros resumiu, em aforismo que tem um je ne sais pas quoi de Sigmund Freud, a filosofia da coisa: “Pagam-nos para termos mentes sujas.”
E estamos a ser injustos. A decente América e os limpos costumes do Dr. Salazar tinham precedentes. Vieram até de onde menos se esperaria. Metam-se comigo na máquina do tempo e venham até aos anos 20.
Os cinemas do departamento de Var, em França, anunciaram a exibição de uma Paixão de Cristo, tema que deu uma tonelada de piedosas adaptações ao virtuoso arranque do cinema. Os presidentes da câmara mandaram ver o filme e, por terem esse poder, proibiram-no. Morresse lá Cristo na cruz pelos nossos pecados, mas a chatice é que o filme culpava a prefeitura de Jerusalém, chamemos assim aos poderes que iam do romano Pilatos aos colaboracionistas Anás e Caifás, pela crucificação do Salvador da humanidade. Conhecedores do valor da analogia, os prefeitos de Var proibiram o insidioso e sangrento filme. Bem feito.
Mas vejam, em 1927, Eisenstein estava a fazer um filme comemorativo dos dez anos da Revolução de Outubro. O estado soviético deu-lhe todos os meios e toda a liberdade comunista para filmar o panegírico da gloriosa vaga vermelha. Lenine já gelava na tumba há quatro anos, mas a Estaline passou-lhe um calor equatorial pela alma e deu-lhe para expulsar do partido o camarada Trotsky, um filho da mãe contra-revolucionário. O diabo era o que Eisenstein já filmara e montara. Eu nem vou dizer que foi censura, pronto. Foi só preciso cortar cenas, eliminar a bela figura trotskiana e remontar o filme todo. Diz-se que Eisenstein ganhou aí a sua úlcera. Não terá sido por falta do zeloso apoio de Estaline, que veio à sala de montagem verificar, com a acuidade do seu olhar, se o inimigo fora varrido do celulóide e se o filme estava limpo, decente e saudável. Oh, se foi bem feito.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na foto maior, Estaline, em 1902, quando a censura, que havia de ser dele, ainda era dos czares.
Na foto menor, o jovem Salazar nos tempos em que era radicalmente contra o sistema, que ainda não era, claro, o dele.