Ladrões de bicicletas

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Não se pode ter fama e ser feliz ao mesmo tempo. Fama e felicidade são paralelas que fingem encontrar-se e é mentira ou miragem, como Lamberto Maggiorani descobriu com aquela amargura burlesca só ao alcance da Itália do pós-guerra.

Vittorio De Sica queria filmar a história de um desempregado que arranja trabalho, na Roma de 1948, a colar cartazes de filmes. O homem põe no prego o quase nada que tem e aluga uma bicicleta para fazer o trabalho. Roubam-lha. O filme, Ladrões de Bicicletas, é a comovente e humilhante peregrinação desse homem por Roma, com o filho, ainda uma criança, à procura dos ladrões e da bicicleta.

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O produtor David O. Selznick quis seduzir De Sica propondo Cary Grant para herói. Mas De Sica achou que nunca na vida ninguém roubaria uma bicicleta a Grant. Pior, se lha roubassem, seria o lado para que Grant dormiria melhor.

Sem dinheiro, De Sica procurou não-actores. Pôs anúncio para o papel do miúdo e a mulher de Lamberto Maggiorani mandou uma fotografia do filho. De Sica não quis o miúdo, mas quis o pai, que estava ao lado, na foto.

Era operário da Breda, a fábrica da amável e homónima metralhadora ligeira, julgo que de antiaéreas, e canhões. Lamberto foi ao casting crivado de dúvidas. Não é todos os dias que se larga um trabalho pago a dois euros e meio por dia, 50 por mês. Decidiu-o uma promessa de De Sica: o patrão da Breda readmitia-o no fim do filme.

Foi feliz. Iam buscá-lo a casa num privadíssimo carrão preto mais bonito do que uma égua do Estado. Os camaradas operários da Breda, orgulhosos, deram-lhe uma medalha. Lamberto ganhou a breve fortuna de mil euros. Comprou mobília nova e concedeu-se a felicidade de umas férias.

Voltou à fábrica. As armas, no fresco pós-guerra, vendiam-se mal e foi preciso despedir. Pressionado pelos outros operários, o patrão pôs Lamberto no olho da rua. Era milionário, diziam, lembrando-lhe os 15 minutos de fama.

Lamberto, na miséria, procurou De Sica. Mas estava na cara que a cara dele era cara de um filme só. As pequenas tragédias humanas dão boas reportagens e a mítica Life foi vê-lo. Era Natal e Lamberto deixou-se fotografar com o peru criado no decrépito quintal. Confessou que ia deliciar-se a comê-lo na consoada. Não era um peru qualquer. Tinha nome. Lamberto chamava-lhe De Sica.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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