Devemos-lhe o mudo sobressalto do primeiro orgasmo que o cinema filmou. Bastaria para ter um halo de aventureira santidade sobre a cabeça. Um igualzinho ao de Nossa Senhora, e não me leva a Senhora a mal, que a humanidade que somos tanto quer a felicidade no céu como na terra.
Além de Nossa Senhora, falo da desconhecida Hedy Kiesler, que só passámos a reconhecer como lá de casa quando, como a água em vinho, de austríaca se transformou em americana. Passou, a seguir a esse milagre, a chamar-se Hedy Lamarr.
Hedy era inquieta e exótica. Depois de Êxtase, o filme orgástico, a inclinação aventureira fê-la casar-se com um negociante de armas, tão estupidamente rico como belicamente ciumento. Chamo-lhe Fred para poupar espaço. O que Fred fez foi comprar todas as cópias do filme – quantas fossem –, num esforço financeiro que fará, a seu modo, suspirar o ministro Centeno. Fred não queria que outros olhos vissem a mulher nua, não queria que outros olhos se fechassem a verem fechar-se, em tão negra e branca plenitude e em forma de bendita alegria e paraíso, os olhos que nesse filme eram os olhos de Hedy.
Êxtase é um filme austríaco de 1933 – toma e embrulha, Hollywood. No filme, Hedy casa jovem com um homem muito mais velho. À jovem mulher acontece o que então acontecia a quem se casava com homens mais velhos. Nada. O milagre era ao tempo uma coisa transcendente e não se comprava na farmácia. Hedy vai afogar o que um vulcão lhe pede que afogue num banho no lago. Nua.
À nuíssima mulher salva-a um engenheiro. Firme, claro, e a cuja firmeza ela começa por dar uma antitética estalada. Mas, à noite, Hedy irrompe-lhe pela casa. Vai ao que vai. O realizador filma-lhe a boca, soberba, a simetria da cara, o peito palpitante. Tocam-se e sabemos onde estão por causa desse braço de mulher a cair em abandono da cama amarfanhada. Depois, a apaixonadíssima câmara já só quer os dois braços dela que deixam e não deixam ver-lhe a cara, num movimento e ritmo que sugerem cá em cima o que o cinema não podia mostrar lá em baixo. Uma súbita e última convulsão dos braços e vemos já a acabada e satisfeita volúpia do rosto de Hedy. Acende-se um fósforo e voltamos ao rosto dela, o felicíssimo fumo a sair-lhe da boca, cigarro entre os dedos. Foi, digamos, a primeira vez que o cinema fumou.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
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