Já digo quem é, mas apanhei-o a falar e não o quero interromper: “Ela era uma grande e bela mulher com uns vinte e dois anos muito bem construídos. Tinha umas abóbadas superiores imensamente expansivas que o décolleté muito profundo do vestido de Verão tornava aliciantes e que, enquanto a conduzia a casa, desencadearam a minha mais libidinosa curiosidade…”
O homem que assim fala é um homem a quem confiamos os nossos filhos. Legou à humanidade obras como The Kid ou City Lights que nos põem a alma a fazer solos de violino. Mas a música dos filmes dele não era necessariamente a que dançava na vida.
Faço um alerta: se trago à colação a vida sexual de Chaplin, pois era ele quem estava lá em cima a falar, é só por honra dessa vetusta firma, chamada arte. Talvez Chaplin tenha dançado de cama em cama, mas é a sua atracção por meninas extremamente jovens que vem ao caso. Primeiro foi Mildred Harris, que estaria entre os 15 e os 16 anos quando nasceu a inclinação dele por ela. Pretextando uma falsa gravidez, Mildred forçou-o a um casamento catastrófico. A caminho da conservatória, antevendo o que aí vinha, Chaplin disse: “Sinto um bocadinho de pena dela.”
Se virem bem The Kid, hão-de ver um anjo de asinhas bem postas tentar o vagabundo que é Chaplin, também ele de brancas asas nas costas. Esse anjo é Lita Grey. Tinha 12 anos e a cara inocente que já o vagabundo enche de outros inocentes beijinhos. Três anos depois, Lita Grey devia ter sido a heroína de outra obra-prima, The Gold Rush, mas dava-se o caso de as jovens mulheres que andavam perto de Chaplin engravidarem. Foi o que aconteceu aos 15 aninhos de Lita. Chaplin, para driblar a punitiva lei, que o podia engavetar por 30 anos, casou com ela.
Muito mais ínvios do que os caminhos de Deus, só os caminhos da arte. O mais provável é que a grande História da Literatura nunca o reconheça, mas Lita Grey foi a fonte de inspiração de Vladimir Nabokov para criar a sua Lolita. Não é certo que o bigodinho que Nabokov promete a Humbert Humbert seja roubado à figura de Charlot, mas já é plausível que a tenra inclinação do herói do livro vá buscar material às realíssimas quedas em tentação de Chaplin. Ah, e Lita Grey era, de seu verdadeiro nome, Lillita. Lillita e Lolita: há nomes que não enganam.
https://youtu.be/SF0OnXD7IWM
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.