Talvez não se lembrem da cena. Guardei-a na mais esconsa gaveta da minha mente. Al Pacino e Ellen Barkin entram no apartamento dele. Ela dá-lhe um empurrão ofegante. “What?”, diz ele, com a brutal economia do inglês que os americanos falam.
Na parede, dois pintalgados desenhos infantis tapam os olhos para não verem o desalmado calor que vai de um corpo ao outro. Ellen tem a respiração ofegante do touro que investe, a gravata de Pacino está já obscenamente amarrotada. Ellen ataca, vira-o de costas.
Ele está de peito e baixo-ventre colados à parede. Ela, por trás, a placá-lo, feroz. “What ‘re you lookin’ for, huh?” sussurra ela. Não é a voz, sexy e ameaçadora, é o “hã” gutural que levanta a cena. Diz três vezes “hã” e as mãos dela não páram de ir à procura, escrutinadoras, répteis, tacteantes. Levantam o que há para levantar, correndo o corpo de um Pacino encostado à parede pelo lado errado. Está exposto, as ancas dela coladas ao rabo dele, a boca de Ellen a morder-lhe as costas. “De que é que andas à procura, hã?”, insiste ela. Possuído, atracado de popa, à mercê do corpo dela já todo nu, ele só se lembra de invocar um Jesus que dispensaria ser para ali chamado.
Esta cena de Sea of Love é das mais eróticas do cinema dos últimos 30 anos. Pela nudez enérgica, dominadora e abundantemente feminina de Ellen Barkin. Mas o que lhe empresta uma sufocante realidade é a ameaça de morte: Pacino é um polícia e Ellen talvez seja uma serial killer que anda a matar os homens que leva para a cama. Com ela – será ela? – todo o mar de amor acaba em mar de sangue.
O fortuito aceno de crime e morte é um ardente suplemento erótico. Humidifica o amor: dá-lhe sangue, suor e lágrimas. Na vida fará medo, mas é para isso que temos o cinema, para nos dar no salivado escuro o que a vida nos tira.
Sea of Love é um filme pensado à homem: uma mulher mata e o perigo põe um polícia em brasa. A insuspeita Jane Campion filmou In the Cut, em que o cinema está mais de acordo com a vida: anda um homem a matar mulheres. Meg Ryan, testemunha fugaz de um crime, vai para a cama com o polícia que investiga. Não se sabe é se ele não é o criminoso. A reconstituir o crime enfiam-se um no outro, a boca dele entre as pernas dela. Em cama de perigo e lençóis de medo, Meg tem o clímax. Ao contrário da exuberante cena de When Harry Met Sally, agora não finge o que deveras sente.
(A cena de Sea of Love está aqui, inteira. A cena de In the Cut está aqui, dos 29′ aos 32′.)
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sea of Love no Brasil é Vítimas de uma Paixão.
In the Cut no Brasil é Em Carne Viva.