Anjelica Huston teve de apanhar um táxi. Viera a uma festa em casa de Jack Nicholson. Trouxera um vestido com um metro de decote nas costas. Por essa adivinhada lábil curva, Jack, que nunca a vira, nem mais vestida, nem menos nua, já não a deixou sair essa noite.
De manhã, Nicholson ainda estendeu a passadeira amorosa ao pequeno-almoço. Mas já estava um amigo a tocar à porta e o indecente Jack não foi de modas: “Não te importas de apanhar um táxi? Tenho uma coisa com os Lakers e não posso mesmo ir levar-te.”
Da mansão ao lado, talvez a regar o jardim, Marlon Brando deve ter sorrido. Eram vizinhos há bons anos. Se Deus e os anjos passam a vida aos beijos, com beijos desses passavam eles a vida. Moravam em Mulholand Drive, tecto do mundo, vista sobre a quilométrica e luminosa impostura que se chama Los Angeles. Vão dizer-me que Brando e Nicholson escondiam a fama em mansões discretas. Mas talvez o meu amado e único leitor esteja a laborar numa ideia errada de fama. A multidão, em Los Angeles, já nesse tempo era muito jovem, jovial e jucunda. Nem Brando, nem Nicholson faziam deflagrar uaus! e outras inteligentes interjeições à adolescente multidão ululante.
Quando Brando morreu, Jack contou um episódio na Rolling Stone. Contou metade, diga-se. A história completa, mais por ironia do que por vingança do pretérito táxi matinal, está nas memórias de Anjelica.
Ora vejam. Brando vem, pesaroso, ter com o vizinho e diz-lhe que acaba de fechar a venda da sua mansão mourisca. “Tenho pena, foi uma oferta que não podia recusar, Jack”, acrescentou, com a convicção de um Corleone. E lançou a bomba: o novo vizinho ia ser Sylvester Stallone. Um enfático “Fuck”, mais sofrido que acrimonioso, ecoou pelas encostas de Mulholand Drive.
Stallone, sim, era a desgraçada fama: quatro permanentes guarda-costas, 24 horas de uma turba de fãs com tendas montadas à porta. Nicholson viu a vida a andar para trás, viu a inexorável febre da devassa a dar-lhe cabo da discrição e doçura das infidelidades que lhe sabiam à massa de croissants estaladiços. “Como é que me fazes uma coisa dessas, Bud” chorava Jack. “Não faço, estava a brincar contigo”, disse-lhe Brando, engasgado no próprio riso.
Foi a melhor practical joke de Brando. E, houvesse espaço, ainda contaria como, à séria e à Stallone, Anjelica atestou a Jack a maior sova da vida dele.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
A foto do alto é de The Missouri Breaks, no Brasil Duelo de Gigantes.
Na foto logo acima, a mansão mourisca de Marlon Brando.