Cantora de boleros, mexicana e predadora por opção, Chavela Vargas tem uma vida desenhada para filme. E o cinema fez-lhe justiça: nos filmes de Almodóvar, que tão bem lhe pilha a música, e no documentário que lhe produziu o meu amigo Alvaro Longoria. Não são filmes, são ramos de flores.
A voz de Chavela era mais do que flores. Que voz era? Não sei se diga rouca, se diga transgressora. Por muito que goste dela, e gosto, Chavela não é a minha cantora de boleros favorita, mas é a que tem a biografia mais excitante.
Mais homem do que mulher, Chavela vestia calças, poncho vermelho, pistola à cinta. Num tempo em que as mulheres não conjugavam o verbo sair, saía à noite, charuto na boca, com o alcaide da cidade e outros machos por ruas perigosas, emborrachava-se tanto como o alcaide e disparava sobre o que ele disparasse. Terá dormido com mais mulheres do que eles todos juntos, o que, mesmo que não seja verdade, também não é rematada mentira. Womanizer foi o que ela foi.
O êxito fê-la saltar do México para Europas e Hollywood. Não deixou de ser o homem que era, mulher portanto, roubando dos outros homens belas mulheres que nunca quiseram ser homens – logo ela que em pequena jamais brincara com bonecas.
Dizem que beijou a boca fresca de Ava Gardner, que se lhe terá rendido de tiro e queda. Boa pontaria, bem se vê. Já li que foi numa festa em Los Angeles e que Chavela roubou Ava a um bouquet de pretendentes. Chavela conta outra história. Foi em Acapulco, num imenso bar, e alguém lhe pediu que indicasse o caminho da casa de banho a uma Ava Gardner a cair de bêbeda. Chavela levou-a pela mão e disse-lhe: “Filhinha, agora vais sempre a direito, sem te desviares, até àquela porta e estás no corredor da casa de banho.” Foi homérico ver Ava a fazer uma linha recta, subindo cadeiras e trepando pelas mesas, para não se desviar um milímetro do caminho. Ficaram amigas, como se diz que foi amiga de Elizabeth Taylor.
Deu-se com pintores. Há uma carta de Frida Kahlo a confessar tremores e olhar nublado: “…és erótica. Serás, porventura, uma prenda que o céu me manda?” escreveu a pintora nessa carta que acusam de apócrifa. Chavela morreu aos 93 anos. Continuava a gostar de armas e a dizer que quando se faz aquilo de que se gosta se deve fazê-lo a noite inteira.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.