Hollywood foi para Godard o que o sexo foi para Fernando Pessoa: nunca experimentou. Não foi por falta de vontade, e houve até um dia em que, como Pessoa a colar a ansiosa boca à boca de Ofélia, Godard beijou Hollywood no canto dos lábios.
Escreveu, desenhou e recortou um storyboard a que chamou The Story. Tivesse sido filmado e veríamos Robert De Niro e Diane Keaton a dar couro e cabelo ao reencontro desencantado de marido e mulher separados há seis anos.
Diria que essa história de desamor tinha como fundo as filmagens de um documentário político, não se desse o caso de, em Godard, não ser fácil apontar o dedo e dizer: “Isto é a história, isto é o fundo.” Diria ainda que o filme terminava mal e diria que terminava bem. De Niro atropelado e morto por mafiosos numa rua de San Diego, vénia a De Niro, godfather. Na mesma San Diego, uma rua abaixo, estão Diane Keaton e a filha, a conversar em casa, nuas e chegadas da praia. Escuta-se um conselho de mãe: “Se não queremos que os homens nos enrabem, temos de aprender a apertar as nádegas.” “Assim?”, exemplificava a filha. Diane olhava e ria-se: “Assim mesmo.”
Se não há dúvida que Pessoa era de apertar as nádegas, já não seria tão seguro dizê-lo de Álvaro de Campos, que a amada menina Ofélia detestava. No “Poema em linha recta” os moços de fretes piscam olhos salazes a Álvaro de Campos; na “Passagem de horas” o poeta desmaia nos braços de todos os atletas. Mas é nas Odes, ignorando o conselho de Diane Keaton, que Campos se exalta “em vasto espasmo passivo” e pede que o rasguem no convés: “Humilhai-me e batei-me, fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa.”
Campos invoca “peludos e rudes heróis da aventura e do crime”, irmãos humanos da aventura e crime com que o Conde de Lautréamont escreveu os seus “Cantos de Maldoror”. Em coisas malditas da literatura, o cinema não toca. Toca Godard. Dos “Cantos”, filmou em Weekend uma balada, “Je te salue, vieil océan”: uma floresta, uma jovem tribo alimentada a ancestral canibalismo, um frenético solo de bateria a ultrajar ouvidos. O oceano da “Ode Marítima” tem as mesmas raízes da floresta de Weekend. Godard, que nunca filmou em Hollywood, um marinheiro rufo de tambor na banda sonora.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
A volúpia de Álvaro de Campos foi filmada pelo português José Fonseca e Costa coincidentemente
recém falecido.Nos feriados de Finados reverenciamos os mortos do passado. Mas neste dia 1 de Todos-os-Santos morreu o cineasta, mas a imprensa brasileira passou em branco, ausente, silenciosa. O que reforça a ideia de que nossos laços lusos comuns são falsos e tênues, nem tanto irmãos nem tanto uma comunidade da língua portuguesa.
Lendo o texto do Manuel me veio a mente um fetiche da juventude também nunca realizado. Transpunha-me para Alcacer Quibir e erotizava com minha professora de literatura que me empurrava semanalmente textos e filmes dos portugueses a quem ela amava mais que a mim.