Esta crónica, que o Expresso publicou no dia seguinte à morte de Manoel de Oliveira, foi escrita duas semanas antes, julgando eu que o Manoel a ia talvez ler. Foi uma crónica escrita para comemorar a alegria de vida do mais velho cineasta do mundo, uma crónica convencida e rendida à imortalidade física de Oliveira.
Estranha ironia, que o que se queria reencontro possa ser lido como despedida.
Manoel de Oliveira tinha 74 anos, acabara de filmar Francisca, filme tão perverso como os filmes de amores torcidos, doentios, que tinham sido O Passado e o Presente ou Benilde ou a Virgem Mãe, a onírica visão do camiliano Amor de Perdição. A Cinemateca, ou o seu demiurgo, chamado Bénard, dedicou-lhe um ciclo e um catálogo, tributo ao criador que pensávamos em final de carreira. Oliveira teria mais uns poucos anos activos, dizíamos, sem saber ainda que ele era imortal.
Um dos textos do catálogo, que Deus nos perdoe é das coisas gráficas mais feiinhas que já se fez naquela casa, era uma mesa-redonda com Oliveira. Também falei e disse tais enormidades que o João Bénard me obrigou a converter tudo numa peça corrida e legível. Trabalho feito, fui ao Porto rever o texto com o senhor Oliveira.
Ainda ele vivia na pasmosa casa da Vilarinha. Tínhamos fim de tarde e noite para limpar a prosa, mas um fim de tarde na Vilarinha pedia remanso e Oliveira levou-me a ver os jardins. À noite, em vez de prudente frugalidade, desafiou-me para um jantar à Porto. Voltámos à Vilarinha já o relógio bocejava mais de onze escuríssimas horas. Pensei que o Manoel, velhinho, achava eu, mais minuto, menos minuto, tombaria nos braços de Morfeu e dei como falhada a missão. Ia ouvir das boas do Bénard.
“Vamos lá, então, ver a papelada”, ouço-o dizer. Com pedalada juvenil, Oliveira meteu-se na mesa-redonda, linha a linha, vírgula a vírgula. Às três da matina, estaria o Sinatra a cantar as wee small hours, levanta-se uma dúvida sobre a autoria de um quadro clássico. Nesse tempo, ainda o gajo da Google andava recolhido em parte incerta de um putativo pai e, ou se sabia de cor, ou tinha de se ir ver aos livros. O Manoel, deixem que o trate carinhosamente assim, foi acordar o filho, pintor, como é sabido, que dormia no andar de cima. Sob coacção, talvez tortura, trouxe-o cá abaixo e desfez-se a dúvida.
Acabámos às cinco da manhã. O meu quarto de hotel nem o cheirara e tinha comboio às oito. “Eu levo-o!” “Oh, Manoel, nem pense, não vai sair a esta hora.” Saiu, claro. Já sabia que ele fora corredor profissional de automóveis. Não estava era à espera de fazer a madrugada do Porto a cem à hora, curvas cerradas, rodas no ar, a apagar sinais vermelhos. Eu, nem 30 anos, derreado, a ver a vida a andar para trás. Ele, alegre, ágil, uma infinita e larga estrada de vida à frente.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Manuel imortalizou Manoel, belíssimo artigo.
Manuel, esse seu é o texto mais saboroso que leio em anos. Qual Camilo!
Meu sempre estimado Miltinho, meu caro Valdir Sanches, é uma tremenda generosidade vossa comentarem a minha crónica como o fizeram. Fico sobretudo muito feliz pelo Manoel de Oliveira, por quem tive e vou continuar a ter um desses amores, à Vinicius, forjado em vivências inesquecíveis. Muito obrigado. Mesmo.