Nunca fui capitão do mato, mas quando ouvi o capitão Vinicius dizer que era o branco mais preto do Brasil, quis ser como ele.
Nas praias de Luanda, da Ilha ou das Palmeirinhas, também tive tardes de Itapoã, um remanso de fazer de todo o homem um santo, calor sem tamanho, imóvel e moreno encontro de céu e mar. Era adolescente, mas as minhas noites já eram de copos e farras, iguaizinhas às que cantaram o poeta angolano Mário António, o brasileiro Jorge Amado. Sei é que, naquele São Salvador da Baía que Luanda fingia ser, me entrava já pela língua dentro o sotaque de musseque. Branco na poesia, mas negro de mais no coração, dizia Vinicius. Eu praticava.
Tinha visto The Nutty Professor. Jerry Lewis era um deplorável professor. Nocturno e perverso, fascinava-se pelas lindas e loiras alunas, mas o seu desengraçado físico tornava ridícula qualquer tentativa de sedução. Apostado em desamargurar a mente e o baixo-ventre, ele inventa e toma uma poção que o transforma em Buddy Love, fatos faiscantes, voz sedutora como a de Dean Martin.
Não era cantar o que me interessava. Sonhava fundir-me no povo que eu achava ser o meu povo. Ia a casa dos meus amigos africanos, eles vinham à minha. Era bonito, mas não se pode confundir esse convívio com a poção de Jerry Lewis. Por mais que convivesse, por mais que torrasse ao sol, era só um branco com sotaque e, vá lá, um brilhozinho negro no coração.
A poção chegou na forma de um primo. Vejamos. Numa família beirã de emigrantes, os ramos esticam-se, tentaculares. Havia primos no Brasil e em França, um tio de marinha mercante no Pacífico. Até que, da ilha equatorial de São Tomé, chegaram notícias de outro ignorado primo que mandou o filho visitar-nos. Não foi Jerry Lewis que nos entrou pela casa dentro. Bateu-nos à porta um Eddie Murphy, que também havia de ser, como Lewis, nutty professor e Buddy Love. Eu tinha um primo negro! Era a minha carta de alforria, a minha legítima libertação da iníqua condição de branco.
Nunca ninguém foi tão mimado naquela casa. Churrasco da capoeira e um estrelado ovo de pata, que enchia um prato. Tudo puro e caseiro, feito com a ternura das mãos da minha mãe, à mesa a conversa de bondade que era a carne e o sangue do meu pai. As águas turvas do Império tudo levaram. Onde andará agora esse primo gentil, tão elegante e negro?
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Nutty Professor, os dois, o original de 1963, que Manuel viu em Luanda, e a refilmagem de 1996, no Brasil se chamaram O Professor Aloprado.