O assassínio no banho é uma invenção de Hitchcock. No século XVIII, o pintor David imortalizara o revolucionário Marat, mostrando-o a sangrar na banheira onde sossegava a comichão de um eczema contra-revolucionário. Marat está no banho, bem morto e esfaqueado.
Duzentos anos depois, num filme, Psycho, a violenta morte no banho voltou a ganhar as cores perversas da obra-prima.
O banho é uma invenção de Hitchcock. Psycho adaptava um daqueles livros medianos que alimentam a doce indústria livreira e a doentia imaginação do cidadão trabalhador. Já o livro inspirava-se em factos reais. Ed Gein, um tipo solitário, de aspecto razoavelmente repugnante, alcoólico e falhado na vida, matara, esquartejara e arrancara a pele – descobriu a polícia – a duas infelizes mulheres que tropeçaram nele, tendo ido ao cemitério buscar uma dezena de outras, com cujos cadáveres se deleitava, pedindo eu já desculpa pelo mau gosto da interminável frase.
O miserável Ed Gein não matou nenhuma das vítimas no banho e no livro cortava-se a cabeça à mulher. Tudo soluções que desagradavam a Hitchcock. Não gostava de muitas mortes nos filmes – “os cadáveres não sabem representar” – e achava que era um desperdício e uma sangria desatada cortar-se simplesmente a cabeça à vítima. O plácido cineasta inglês tinha inveja do que os realizadores do mudo tinham feito às suas actrizes e heroínas. Nessa altura, jurava ele, sabiam torturar uma mulher e faziam aquilo bem feito. Inspirado em seriados populares como The Perils of Pauline ou nas personagens com que Griffith e Sjöström seviciaram Lillian Gish, na cabeça de Hitchcock nasceu a bela e criminosa ideia de matar no banho a sua protagonista, aos 47 minutos de filme.
Matava-a Anthony Perkins. O que, sendo verdade, é rematada mentira. Perkins era, no filme, Norman Bates, um homem, mas tem de se vestir de mulher, e incarnar a mãe, para matar, doido (ou doida?) de ciúmes, a mulher que antes, por um singelo buraquinho na parede, vira despir-se e entrar para o duche.
Três minutos de chuveiro e umas 50 facadas são a matéria desta cena, vá lá, sublime, de Hitchcock. O pai de uma jovem espectadora escreveu-lhe, acusando-o de que a filha se recusava há meses a entrar no duche. “Mande-a à limpeza a seco”, respondeu-lhe o anafado inglês.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Adorei essa de “Mande-a à limpeza a seco”.