O medo de voar fica bem a Meg Ryan. Sem o medo de voar, Meg nunca teria perdido o primeiro namorado, em French Kiss. E, se não tivesse feito das tripas coração para superar o medo de voar, Meg Ryan nunca teria encontrado o Kevin Kline expert em vinhos e queijos, aventureiro que dá à sua tez loira um pouco da morena animalidade que bem falta lhe faz.
Não tinha nenhuma Meg à espera e ainda não deixava para trás a Meg com medo de voar que havia de ser minha, quando me meti num avião, em 1975, em Lisboa. Destino: Luanda a ferro e fogo.
Tinha 21 anos, a família retornara a Portugal, os amigos eram um cometa a desintegrar-se no cosmos, com os restos a espalharem-se por Áfricas do Sul e Américas. E eu regressava a Angola: a uma casa onde podia dormir em Luanda, a outra no Lobito.
Estivera entalado entre o frio dos Alpes e umas vagas aulas de Sociologia na mais Patrice Lumumba das universidades francesas. Um amigo angolano foi lá resgatar-me. Prometeu-me para Luanda o que, num filme de Godard, Fuller dizia ser o cinema: “Amor, ódio, acção, violência e morte. Numa palavra, emoção.” Há filmes imperdíveis, sobretudo se soubermos que, escolhendo-os, é o passado que estamos a beijar, dando um pontapé no cu ao futuro.
Mas não esperem de mim um pathos trágico. A farsa vicentina entra-nos na vida pelos bolsos. Com os últimos tostões, comprara um cachorro-quente no aeroporto de Zurique e não tinha dinheiro para pagar o avião da TAP. Precisava, ou não fosse isto um filme português, de um caridoso subsídio.
De Luanda, voltavam centenas de aviões carregados de famílias, medo e desesperança. Vinham cheios, iam vazios. Peguei no meu cabelo revolucionário e nos óculos à Lennon e fui à Força Aérea, em Monsanto. “Não fazem o favor de me dar boleia para a independência de Angola?” Iam tendo um ataque. Recompuseram-se: só se assinasse um papel a dizer que ia como “povoador”.
À noite, entrei num Boeing de que fui o único passageiro. Dois soldados eram todo o pessoal de uma cabine que enchi de solidão e um riso irreprimível. Oito horas depois, saí por um portão clandestino do aeroporto de Luanda, sem alfândega nem controle, a doce e já húmida luz da manhã a bater-me na velha mochila da tropa e numa portátil máquina de escrever Hermes Baby. Ainda a adolescente Meg Ryan não sonhava que meteria uma perna secundária entre as dos pilotos de “Top Gun”.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.