Queria ter asas e voar, mas não é Ícaro nem o Jardel da canção do Rui Veloso quem quer. E ainda assim tive uns aviões na vida. Misturam-se com filmes.
- Eu era monandengue, 8 anos, calções coloniais e sonhos de luxo. Tinha dias em que o meu prazer era ir para a varanda do aeroporto de Luanda ver os aviões levantar. Apocalypse Now: a gasolina cheirava-me a progresso e lá longe.
- Muito depois, na SIC: já vestia um fatinho Armani, pescoço entalado em gravata e cabeça atafulhada de excel e audiências. Apoiámos um documentário da Graça Castanheira. Dois monandengues de Maputo, desiguaizinhos ao meu mim de Luanda, passavam os dias no aeroporto a ver aviões levantar e aterrar. Um deles, sonhador, explicava como era voar: “Eh, o avião sobe, então, e as pessoa desmaia já, lá dentro. Viajam só desmaiadas. Acordas quando o avião aterra.”
- Sem os medos da Meg Ryan de French Kiss, a primeira vez que voei – ou desmaiei, então – foi num Friendship, de Luanda ao Lubango. Desmaiei, sim: íamos no meio das nuvens de algodão-doce, uma fenda chamada Tundavala aberta na acre mousse de chocolate que é a terra angolana.
- Tive o meu momento Principezinho. A janela de um Boeing, onde eu por acaso ia, derramou uma lágrima a ver o nascer do Sol sobre o Saara. O dedo do avião limpou a gota que caía, com vergonha que o céu visse.
- Tive um momento British Airways: voava sobre o Pólo Norte, a doer de branco e tiritar de frio lá em baixo. Sentado, na cadeira ao lado, o aquecimento global: era mesmo a Melanie Griffith, loura, em sossego e sono que um Bloody Mary embalava.
- Na noite tropical de Luanda, bruto capacete de humidade em cima, descendo a escada do avião, chegavam as minhas estrelas: primeiro o senhor Otto Glória, depois o senhor Coluna, o senhor José Augusto e, logo, os miúdos Eusébio e Simões. E os meus 15 anos na pista, ao lado deles, a ter a certeza de que só são estrelas do céu aquelas que podem descer à terra.
- Como no Empire of the Sun foi um estalo. Estalo do mundo a partir-se. Lembro-me desse meio-dia, e do Mig soviético, por cima do meu bairro de Luanda, a romper a barreira do som. Um estalo supersónico e (uau!) os ouvidos a rasgarem-se de infinito. Estampido no céu, povo a gritar em terra: “a vitória é certa.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.