Não há beijos no rabo em Michelet

zzzzmanuel01

Não foi por ter ido a Cope­nhaga de pro­pó­sito escolhê-lo, mas o mais bizarro “melhor filme” que já vi foi Hek­sen, um filme mudo dina­marquês, rea­li­zado pelo sueco Ben­ja­min Christensen.

Hek­sen é mais conhe­cido pelo sub­tí­tulo A fei­ti­ça­ria atra­vés dos tem­pos, e só não digo que foi um amor à pri­meira vista por­que já o tinha visto, letra a letra, num livro que é o “mais estra­nho melhor livro” que já li. Escreveu-o, no século XIX, um fran­cês, Jules Miche­let, e chamou-lhe As Fei­ti­cei­ras. Escri­tor pro­lí­fico e ele­gante, a bizar­ria de Miche­let começa na sua ins­pi­ra­ção: quando era escassa, ia a um uri­nol público, enchia o peito do ar fétido e vol­tava a cor­rer para casa, para mais cem páginas.

zzzzmanuel02

 

Miche­let relata os jul­ga­men­tos e autos-de-fé em massa de fei­ti­cei­ras na Europa. E faz tam­bém a satâ­nica exal­ta­ção da psi­co­lo­gia des­sas mulhe­res de sexo hiper­bó­lico que pare­cem casar a força do macho com o poder da fêmea.

Livro de hor­ro­res? Tal­vez, mas sem­pre de intensa vibra­ção sexual. Miche­let agarra na nossa mão e põe-na naquele sítio em que logo per­ce­be­mos que a fei­ti­ceira é a que dis­trai Jesus da insi­pi­dez dos seus san­tos: “Deus nos livre – escre­veu Miche­let – de viver­mos num mundo em que todos os ros­tos huma­nos, deso­la­do­ra­mente seme­lhan­tes, têm essa igual­dade ado­ci­cada de con­vento ou de sacris­tia.”

zzzzmanuel03

 

A fei­ti­ça­ria atra­vés dos tem­pos, por­ven­tura mais gótico, com bru­mas ale­mãs à mis­tura, expo­si­tivo como o livro, é um filme deli­rante e tem um friso de frei­ras que ani­ma­ria qual­quer con­vento – frei­ras bai­la­ri­nas, de boa lín­gua solta, pronta a dar-se à lín­gua do diabo que é o pró­prio rea­li­za­dor. Capaz, em noi­tes de lua cheia ou lua nova, de arran­car mulhe­res à cama dos mari­dos, Chris­ten­sen arroga-se pri­vi­lé­gios de autor e, numa das cenas, vemo-lo exer­cer o seu satâ­nico direito, exi­gindo que lhe bei­jem o rabo.

Ora, não há bei­jos no rabo em Miche­let. Mas o livro dele tam­bém nos arrasta para a deli­rante roda do sab­bat com pro­mes­sas de orgia e a cer­teza de nuas dan­ças car­na­va­les­cas. É pro­vá­vel que, mesmo depois de ler­mos As Fei­ti­cei­ras, con­ti­nu­e­mos sem saber o que é que, além do humano, estas mulhe­res tra­ziam den­tro de si. E ainda menos: como é que lá entrou e por onde é que entrou. Mas, lido Miche­let e visto Hek­sen, temos a cer­teza de que por estas mulhe­res vale a pena cor­rer o risco e o escân­dalo das lúbri­cas laba­re­das de uma fogueira.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *