Morre o crucificado

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Foi no ester­tor do século XV. À bruta, Hans II inte­grou a Sué­cia na união que já reu­nia a hege­mó­nica Dina­marca e a Noru­ega. Foi rei da fria Escandinávia.

Obs­ti­nado na acção, mas um homem diver­tido, foi assis­tir a uma peça nessa Sué­cia rebelde. Praça cheia de povo, representava-se um mis­té­rio da Pai­xão. Podia ser o Acto da Pri­ma­vera, se Manoel de Oli­veira fosse escandinavo.

Ante­ci­pando cinco sécu­los o Evan­ge­lho segundo Mateus que Paso­lini fil­mou com popu­la­res e a pró­pria mãe, os não acto­res foram subli­mes, emu­la­dos tal­vez pela pre­sença real. Um deles, pouco mais que figu­rante, cen­tu­rião ape­nas, três pas­sos ao lado da cruz onde finge ago­nizar o Cristo, ergue a lança e, com ino­pi­nado rea­lismo, ataca o tronco, esse centro-esquerda onde dói o cora­ção do cru­ci­fi­cado. O vigor é tanto que a lança fura a pele do actor, irrompe entre as sur­pre­en­di­das cos­te­las e afoga-se com embri­a­guez no cora­ção do homem no madeiro. O cru­ci­fi­cado morre como mor­rera, para sal­va­ção dos nos­sos peca­dos, o Filho do Homem.

É o bur­bu­ri­nho, a mais alta e baixa como­ção na assis­tên­cia. O povo grita (mas que Povo é que não grita?), retorcem-se mãos afli­tas, olhos que se revi­ram, um des­maio. Ergue-se o par de cor­nos viking do rei. Trans­tor­nado, des­me­su­rado, sha­kes­pe­a­ri­ano, Hans chama os guar­das, a sua bru­tal Guarda Negra. E dá uma ordem. Os guar­das avan­çam e ali, em cena, no pri­meiro exem­plo de meta-dramaturgia que a Escan­di­ná­via conhe­ceu, cor­tam a cabeça ao cen­tu­rião, pobre figu­rante, um pro­vá­vel oleiro, even­tual car­pin­teiro de Estocolmo.

O cinema não existe, o cinema é a fixa­ção do tea­tro”, bem dizia Oli­veira. Nin­guém fixou, em Esto­colmo, a fusão de palco e vida, inteiro tea­tro do mundo que acon­te­ceu naquele dia. Por sem­pre ser mais natu­ra­lista do que con­vic­ta­mente van­guar­dista, o povo revol­tado não per­doou a Hans II. A morte do cru­ci­fi­cado, exces­siva embora, fora um aci­dente. Mas matar-se um actor para vin­gar in loco a morte daquele que mor­reu por nós, é uma intro­mis­são híper-realista que nem o mais dra­ma­túr­gico dos após­to­los exi­gi­ria. Para a her­me­nêu­tica popu­lar, ao deca­pi­tar o cen­tu­rião, o rei negava o per­dão que a morte do Cristo cru­ci­fi­cado pre­su­miu ofe­re­cer à cul­pada huma­ni­dade. Foi rei a mais no palco do povo. Pouco depois, o povo sueco obri­gou Hans II a renun­ciar à coroa.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Na foto do alto, cruzes de Oliveira, com centurião. 

Na foto P&B, cruzes de Pasolini, com escada e sem centurião. 

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