“Quando se virou a página, virou-se a página.” É o que sai da boca de Godard. Mas o brilho triste dos olhos que Anna Karina fixa na boca dele desmentem-no. Estão, lado a lado, num plateau de televisão. Vinte anos depois de se terem divorciado. Vinte anos sem se terem voltado a ver.
Ela era uma dinamarquesa de 17 anos, em Paris, e ele veio propor-lhe que ela aparecesse, nua, em A Bout de Souffle. “Não me dispo”, disse ela. “Vi-a nua num anúncio”, respondeu Jean-Luc à bruta. A inocência escandinava dela não se deixou vencer: “Viu-me coberta de espuma, a sua imaginação é que me terá visto nua.” Entrou, vestida e protagonista, no filme seguinte, Le Petit Soldat. E entrou em mais seis filmes e meio. Entraram um na vida do outro, ela de vestido de noiva, como em qualquer história romântica e burguesa: “Deixei a minha mãe por Jean-Luc, o meu marido. Que foi também meu pai e meu irmão.”
O entrevistador pergunta a Godard como era Karina, a esposa. Godard e Karina na “Casa dos Segredos”. Godard esconde a vontade de ser gentil atrás de um cigarro nervoso. “É o maior elogio que lhe posso fazer: Karina era uma actriz do mudo. Formidável. A dificuldade foi que Hollywood já não era o que fora e a Europa não tinha essa força.” E depois deste fumo teórico, acrescenta: “Welles tinha a Rita Hayworth, Sternberg tinha a Marlene. Segui esse modelo. Só tinha filmes para lhe dar e os filmes nem sempre passam para a vida.”
Anna vê as coisas de maneira diferente e, agora que tem os olhos rasos de lágrimas, já nem vê nada. Levanta-se, desculpem, e sai. Segue-a Lola, a fiel cadela de Anna, que estava escondida no cenário. Godard fica pregado à cadeira. Balbucia um “não vou chorar”, talvez. É o mais menino, desarmado e impotente Godard que uma imagem já mostrou. Não sabe como proteger ou consolar o amor de Anna, a mulher que já não via havia 20 anos, essa página virada que acabou de se levantar e chora.
A emissão pára. Karina, a dinamarquesa, volta mais tarde. Ele ainda fala a medo. E é ela – são sempre elas – que olha para ele, com uns olhos cheios de saudade do amor antigo. Encosta-lhe a cabeça ao ombro. Por fim, ele agarra-lhe a mão. Brinca com o anel dela. Dão as mãos e riem-se, numa intimidade embaraçada. É televisão. Poderia ser num dos filmes dele?
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.