É uma pena que tenham sido apenas três apresentações do show de Fafá de Belém no projeto Sala de Estar, do Sesc Pompéia. Quem viu, viu, quem não pôde não terá a oportunidade de ver – e é impressionante como Fafá tem uma legião de fãs absolutamente apaixonados.
Não tinha idéia disso. Admito com um tanto de vergonha, mas de fato não sabia que a cantora desperta tanta paixão. Eu mesmo não sou propriamente fã dela – fui ao show deste domingo, 24, o terceiro e último dos três no projeto Sala de Estar, por amabilíssimo convite do maestro Miguel Briamonte, diretor musical do espetáculo e que acompanha a cantora ao piano, ao lado do contrabaixista Renato Schneider Loyola.
São apenas os três no palco – Miguel Briamonte ao piano, Renato no contrabaixo, e Fafá. Não precisa de mais nada. Eles preenchem todos os espaços, os físicos e os sonoros.
É impressionante: parece que tocam juntos há anos, que um conhece cada movimento que o outro fará. Ensaiaram apenas uma única vez, e foram para o palco do Sesc Pompéia na sexta-feira, 22. Segundo Briamonte, ele praticamente improvisou durante as apresentações.
Até porque Fafá, pelo jeito, é imprevisível, decide na última hora o que vai cantar. Como o Sesc é extremamente profissional em tudo que faz, um pequeno programa foi impresso e é oferecido ao respeitável público. Traz um texto assinado pelo jornalista e crítico musical Eduardo Logullo, um velho amigo dela e autor, junto com ela, do roteiro do show, e mais a lista de canções, a set list.
Pois bem: Fafá respeita a set list impressa e distribuída ao respeitável público como os motoristas brasileiros, os cariocas em especial, respeitam o sinal vermelho.
O programa diz que ela cantará, de Jorge Benjor, “O telefone tocou novamente”. De Jorge Ben, ela canta, em seguida, uma ligada à outra, “Charles Anjo 45” e “Que Maravilha” (esta de Jorge e Toquinho).
Aliás, a versão que Fafá, Miguel Briamonte e Renato Schneider Loyiola fazem de “Que Maravilha” é isso que está no título da canção deliciosa.
O programa promete “Se eu quiser falar com Deus”, a canção de Gil. Fafá não quis falar com Deus.
Promete também “Mistério do Planeta”, dos Novos Baianos Moraes Moreira e Galvão. Fafá não cantou a música.
Em compensação, fez (sem que isso estivesse anunciado no programa) uma versão extraordinária, emocionante, de uma canção que traz a assinatura de Gal Costa, na minha opinião (e na de mais alguns milhares de pessoas) a melhor cantora brasileira surgida depois de 1960 – “Vapor barato”, de Macalé e Waly Salomão. Gal seguramente aplaudiria Fafá na interpretação maravilhosa que ela fez do hino tropicalista-riponga que marcou mais de uma geração.
Presenteia a platéia com uma canção lindíssima do português Rui Veloso, também ausente do roteiro original.
Leva a platéia ao absoluto delírio com “Andança” (Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi), que Beth Carvalho cantou no Festival Internacional da Canção de 1968.
Na verdade, Fafá levou a platéia ao delírio diversas vezes. É uma artista que se mostra absolutamente simpática com seu público. Incentiva que cantem junto com ela em diversos momentos; incentiva que batam palmas para marcar o ritmo de algumas das canções. Aqui e ali, no meio de uma das conversas com o público, dá aquela risada característica dela, aberta, escancarada. Lá pelo meio do espetáculo – que dura quase 2 horas inteiras – pega um copo de vinho e toma um gole. Ostensivamente. E comenta que gosta de beber; fumar, nunca fumou, mas gosta de beber, gosta de feijoada, de carne sangrando. E se define como politicamente incorreta – e inclassificável.
Por duas vezes, Fafá errou. Errou no comecinho de “Eu e a brisa”, de Johnny Alf, a terceira música do show. Não se fez de rogada: disse que errou, e pediu para o maestro Briamonte recomeçar. Bem mais tarde, ao cantar uma autêntica pérola de Adelino Moreira, “Devolvi”, a voz falhou no auge da canção, no momento de ela cantar a palavra final, o grand finale. Não perdeu o rebolado. Comentou a própria falha, e simplesmente recomeçou – cantou a música todinha de novo.
Fafá é uma absoluta simpatia.
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É necessário fazer um registro sobre esse projeto Sala de Estar – um troço que, perdão pela repetição, é ótimo como tudo o que o Sesc de São Paulo faz.
A idéia, segundo frase um tanto emproada demais divulgada por eles, é “traçar um panorama da música brasileira feita nas quatro últimas décadas”. Em português claro, é assim: o artista é convidado para um fim de semana de apresentações no Teatro do Sesc Pompéia em que mostra músicas que o influenciaram, que fizeram parte de sua formação. Entre uma música e outra, o artista conversa com o público, conta histórias. No palco, são colocadas umas três ou quatro poltronas de sala – Sala de Estar, ou seja, é como se o artista estivesse conversando com seu público. “O tablado se transfigura em aposento para que cantores e compositores brasileiros possam revelar seus heróis musicais, as obras que os fizeram criadores e as canções que os arrebataram enquanto forjavam a própria trajetória artística”, como diz o texto oficial. Quase tudo o que o Sesc faz é uma maravilha, mas tudo na vida tem exceções: numa agradável tarde de verão, eu não convidaria para um papo e um chopinho o sujeito que escreve “o tablado se transfigura em aposento”.
O projeto começou em janeiro deste 2015 com João Bosco. Já passaram por lá, antes de Fafá, Nando Reis, Fagner e Guilherme Arantes. Está marcado que Zizi Possi se apresentará der 16 a 28 de junho, e farei o possível para não perder: tenho grande admiração por ela. Há promessa de que depois virão shows com depoimentos de Moraes Moreira, Ney Matogrosso e Geraldo Azevedo. Gostaria de ver todos eles. Lamento ter perdido o de Raimundo, que admiro bastante, muito mais que admirava Fafá.
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Mas a verdade é que Fafá me surpreendeu neste show. Ela é surpreendentemente melhor do que a imagem que eu tinha dela.
Antes de sair de casa para ir ao Sesc Pompéia, que fica ali ao lado, dei uma olhadinha nos meus discos: não tenho sequer um CD de Fafá. Tenho quatro LPs, e três deles trazem o carimbo de “promocional invendável” – são da época em que escrevia sobre música no Jornal da Tarde e as gravadoras me mandavam discos.
Se eu ainda fosse “crítico de música” (expressão de resto detestável, horrorosa), e o Jornal da Tarde ainda existisse, escreveria lá que o show de Fafá de Belém é muito, muito bom.
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Fafá é uma cantora exagerada, que não tem vergonha de ser exagerada. Em muitas canções – quase todas, a rigor –, é teatral, dramática. Fafá é, em 99% do tempo, anti-bossa nova, anti-voz desesperadamente pequena querendo parecer ser menor ainda. Fafá deixa para trás aquela coisa chata que algumas pessoas insistem em dizer, que só é bom quem canta pequeninho, tipo João Gilberto, tipo bossa nova.
(Quando eu digo algumas pessoas, tenho na cabeça Ruy Castro, aquele sujeito que engoliu o rei e acha que foi ele que reinventou a bossa nova, que a bossa nova existe hoje no mundo porque ele escreveu um livro sobre ela.)
Fafá é espantosamente chegada a um berro, essa coisa que a estética bossa-novística temia como o diabo teme a cruz, o vampiro teme a estaca e o alho. Bem-aventuradas as pessoas que não seguem cartilha, abecedário, manual. Fafá berra espantosamente – que bom que haja na música brasileira quem desrespeite os padrões, conforme nos lembraram, quando eram jovens, Caetano e Gil.
O tropicalismo de Caetano e Gil foi feito em nome de derrubar tradições, conceitos pré-formatados, velharias.
Cantar com voz pequenina virou uma tradição, um conceito pré-formatado, uma velharia.
Fafá demonstra isso com perfeição.
Tropicalisticamente, no sentido de ir contra a corrente principal, a maré do mainstream, Fafá abraça, com seu peitanzil que já deu até nome a um carro, o brega. Credo em cruz, como é brega “Memórias”, de Leonardo Sullivan, a segunda música que ela cantou no domingo. Como é grotesca, absurda, infamemente brega “Abandonada”, de Michael Sullivan e Paulo Sérgio Valle (meu Deus do céu e também da terra, Paulo Sérgio Valle!).
Pois é. Mas Caetano também adora cantar Peninha e outras breguices.
O Brasil é brega, uai!
E então Fafá canta hinos bregas – aos quais a platéia responde urrando de felicidade.
Seria, então, Fafá, um troço próximo do brega?
Como diria o jovem, muito jovem Chico, qual o quê. Fafá, como a música brasileira, como era o povo brasileiro antes que acontecimentos políticos o transformassem num povo chato, impaciente, nervoso, neurótico, dividido ao meio, puto da vida com a outra metade, é alegre, é múltipla, e cheia de ginga.
24 e 25 de maio de 2015
A metade do povo brasileiro puto da vida com a outra metade, arrecua os arfes, e para evitar a catástre, pode ler um antigo crítico musical, que após assistir um espetáculo do SESC, consegue aplaudir uma brega FAFÁ, ex musa de teotonio, intérpetre do mais brega hino nacional, que as margens plácidas surgiu.
Pena que a crítica positiva a FAFÁ consiga
fazer a voz pequenina, que virou uma tradição,tornar-se um conceito pré-formatado, uma velharia, como diz. Pena ainda que o SESC nào consiga resgatar NARA LEAO, de voz pequena, menor que seu talento.
Quem sabe o crítico possa assistir no mesmo SESC a uma apresentaçao da voz pequena de ADRIANA CALCANHOTO.
As poderosas vozes de GAL e FAFÁ, jurássicas e bregas junta-se a voz de NANA CAYMMI filha do autor machista de Marina, para homenagear e reverenciar a maior de todas, a inigualável ELIS REGINA.