Se se interessava por filmes quando era criança, perguntaram-lhe. Com aquela voz torta e áspera que era a dele, John Ford disse: “Not really, e agora também não, mas é uma boa maneira de ganhar a vida.”
Descobri, na atitude desabrida de Ford, razão para não gramar gente que enche a boca de amor ao cinema, amor aos poemas, às artes. Ford execrava essa atitude. Fazia filmes. E pronto. Ou melhor: e prontos!
Era um tipo difícil. Bebia, era grosseiro, teria amantes, mas bem escondidas – uma delas terá sido Katharine Hepburn, prova de que Ford era mesmo um tipo difícil. Não me falem da ambiguidade moral dele, falem-me da humanidade das suas personagens, do cepticismo de fachada com que camuflam o desejo de amar – uma prostituta e um bandido são os heróis de Stagecoach. E o herói de The Searchers é um amargo vencido da vida, na aparência racista até à quinta casa, na aparência ressentido sexual e politicamente.
Não gostava de banqueiros – em Grapes of Wrath, Tobacco Road e Stagecoach, os banqueiros são os vilões – o que faz dele o perdido irmão de direita de Mariana Mortágua. Fazia westerns para respirar o ar puro de Monument Valley, para dormir com as estrelas, ter o apetite do caraças que dá ao animal humano quando volta ao campo.
Usava uma pala camoniana no olho direito. Bastava-lhe o outro olho para fotografar a paisagem como mais ninguém a fotografou. Punha luz nos olhos dos actores, e a profundidade de campo, que Orson Welles inventou, já ele a tinha inventado de mansinho. Chamaram-no para realizador porque berrava bem. Dava um grito e punha o plateau em silêncio. Era disso que os filmes, então mudos, precisavam.
Cruel, era o mais leal dos homens para aqueles de quem gostava. A ambição dele era parecer que não tinha ambição nenhuma, mas não acreditem em nada do que Ford disse. É falso, por exemplo, que não mexa a câmara. Esconde é o movimento dela no movimento das personagens. E é mentira que não se comova. Viu o documentário que Bogdanovich lhe dedicou. Uma sala inteira batia-lhe palmas e ele, com contrafeita displicência, chutou para canto: “Não está mal, escolheste foi o mais chato dos assuntos.” Mas antes de virar costas, agarrou a mão de Bogdanovich, apertou-a (com ternura, invento eu) e sussurrou-lhe um amoroso “Thank you”. Era homem de dar a mão a outro homem.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Eis os títulos brasileiros:
Stagecoach – No Tempo das Diligências
The Searchers – Rastros de Ódio
Grapes of Wrath – Vinhas da Ira