Uma saga anti-Pinóquio

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Um nariz, um sim­ples nariz, é a adunca dis­tân­cia a que pode­mos ficar da gló­ria. Basta ver a ter­rí­vel his­tó­ria de Everett Sloane.

Ainda o nariz dele só tinha sete anos e já estava em cima de um palco. Foi actor no Mer­cury The­a­ter de Orson Wel­les e era dele, mais rouca do que nasa­lada, a dobrada voz de Hitler nas actu­a­li­da­des que pas­sa­vam antes dos filmes.

Wel­les trouxe-o para Hollywood, para que ele fosse Mr. Berns­tein, o judeu que ama Kane como nem Deus foi amado. Foi avun­cu­lar, rabí­nico, diver­tido, a inter­pre­tar esse Berns­tein que é uma das gran­des per­so­na­gens de Citi­zen Kane. O impo­nente nariz – tomara Cyrano – ajudou-o muito. Mr. Berns­tein atra­vessa todo o filme e tem, por isso, todas as ida­des. Quando Citi­zen Kane começa, Eve­rett Slo­ane é um rapaz novo e, depois, com uma careca sin­gela, sem mais maqui­lha­gem, faz de velho. Orson Wel­les roía-se de inveja: tanto para fazer de novo como para fazer de velho tinha de sofrer debaixo de tone­la­das de cre­mes e próteses.

O que Wel­les via como uma extra­or­di­ná­ria vir­tude de Slo­ane, era para o outro uma mal­di­ção. Porem-lhe uma careca e ele ficar velho com tanta faci­li­dade desgraçava-lhe a car­reira. Slo­ane pôs-se a pen­sar e con­cluiu que o pro­blema era o nariz: “É grande de mais. Faz de mim um velho. Se tivesse o nariz mais pequeno, era como o Orson Wel­les e podia ser pro­ta­go­nista.

Come­çou então a sua saga anti-Pinóquio. Cor­tou pri­meiro um boca­di­nho do odi­ado apên­dice. Julgo que não terá sido em casa com uma tesoura, mas não ficou bem. E cor­tou mais um boca­di­nho, à segunda vez. Cor­tou três, qua­tro suces­si­vas e depri­men­tes vezes. Mas, se fora secun­dá­rio em Kane, secun­dá­rio ficou a seguir: fez de Arthur Ban­nis­ter, tor­tu­oso advo­gado de The Lady from Shan­gai, e foi médico do para­plé­gico Mar­lon Brando em The Men. Mara­vi­lhoso sem­pre, mas sem­pre em sup­por­ting roles, sem che­gar ao estre­lato e fan­farra com que sonhava.

Note-se, a enorme penca que tinha em The Lady from Shan­gai já só era um repo­lhi­nho em The Men. Cor­tou mais no nariz do que Por­tu­gal nas des­pe­sas do Estado e sem nunca o con­vi­da­rem para pro­ta­go­nista. Aos 55 anos, a viver numa man­são, entre as pal­mei­ras de Sun­set Bou­le­vard, não resis­tiu ao estigma e matou-se. Matou-se, jurou Orson Wel­les, por causa do nariz, do adunco e cruel nariz, esse ter­rí­vel passo que o sepa­rava da glória.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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