Uma gente diferenciada, que nunca precisou de cota

“No dia em que os filhos do pobre e do rico, do político e do cidadão, do empresário e do trabalhador, estudarem na mesma escola…nesse dia o Brasil será o país que queremos.” Eduardo Campos

Provavelmente Eduardo Campos teria ficado satisfeito se soubesse que meninos pobres, como, por exemplo, um certo Joaquim Barbosa, filho de um pedreiro, e meninos ricos, como um certo Fernando Collor de Mello, filho de um senador, estudaram, nos anos 70, nas então prestigiadas escolas públicas CASEB e Elefante Branco, situadas na Asa Sul de Brasília.

O Plano Educacional elaborado na época da inauguração da Capital, por um grupo de idealistas, pregava uma revolução na educação brasileira. Mas foi também utilizado para tornar a educação de excelência um dos atrativos da cidade, capaz de convencer relutantes deputados e altos funcionários públicos a se mudarem do Rio de Janeiro para a aridez e a solidão do Planalto Central.

O item “b” do plano registrava como um dos objetivos ” concentrar as crianças de todas as classes sociais na mesma escola (democratização) “.

Pena que o sonho de igualdade tenha durado apenas entre os anos 60 e 70, vindo depois a sofrer um longo e agonizante retrocesso.

De qualquer forma, durante quase trinta anos, com suas várias escolas públicas de primeiríssimo nível, além de dispensar as classses mais altas da despesa com colégios particulares, Brasília tornou-se um eldorado para aqueles menos privilegiados, que sonhavam em ver os filhos vencerem na vida através do estudo.

As outras iscas abanadas para atrair políticos e funcionários públicos para Brasília, como as enormes casas e apartamentos funcionais, a famosa “dobradinha de salário” e demais mordomias, logicamente eram direcionadas aos moradores das Asas Sul e Norte do Plano-Piloto. Mas, afortunadamente, essas ótimas escolas públicas foram implantadas também nas raras Cidades-Satélites então existentes, que, poucos de fora sabem, contavam com alguma organização e planejamento urbanístico.

Alunos como Urandir e Adriana, e muitos outros, que hoje seriam candidatos a cotas pela cor da pele ou pela extrema pobreza, souberam tirar bastante proveito dessa oportunidade. Conseguiram vagas no Colégio Taguatinga Norte – CTN, situado na mais próspera das cidades-satélites de Brasília, que já naquela época, anos 70, contava com um vigoroso comércio e algumas indústrias.

O CTN tinha ótima biblioteca, laboratório de ciências, sala de artes, quadras de esportes, mesas de ping-pong, auditório, amplos gramados, pracinha florida, nenhuma pichação ou depredação e um diretor muito severo. Existiam ainda outras escolas de cursos ginasial e de segundo grau do mesmo nível em Taguatinga, como o Cemab e a EIT. Não estranhem: siglas são o sal da terra em Brasília.

Negro, bonito e paupérrimo, o sempre risonho Urandir tinha como colegas de sala não só filhos de famílias tão pobres quanto a dele, mas também outros bem mais abonados. Indisciplinado como era, provavelmente teria respondido com um sonoro palavrão a qualquer oferta de cota racial, caso isso existisse na época. Mesmo sendo ativo frequentador da turma do fundão da sala “G” do 2º ginasial, ele nunca precisaria desse tipo de ajuda, pois tirava nota 100 em quase todas as matérias, até por prevenção, para compensar alguma nota mais baixa que pudesse receber devido às frequentes perdas de pontos por indisciplina. É que a média abaixo de 70 significava reprovação na certa.

Urandir não era o único negro ou mulato com notas altas na Turma “G”, mas chamava mais atenção por ser o líder da gang da bagunça, integrada também pelos craques em matemática Geraldo “Cara de Índio” e Vicente “Branquelo do Pum”, que uma vez foi expulso da sala por razões que o próprio apelido explica.

Adriana estudava na sala ao lado, a Turma “H”. Igualmente negra e muito inteligente, era mais comportada e preferia sentar-se na primeira fila. Apesar de sobreviver auxiliando o pai na produção e venda de churrasquinhos nas ruas, estudava numa escola que hoje seria considerada “de elite”. Quase rotineiramente tirava notas 90 ou 100 e considerava uma nota 80 a beira de um abismo. Entendia tudo de biologia, história, matemática, análise sintática e adorava ler na biblioteca na hora do recreio. Mas aposto que nada disso conseguiria fazê-la compreender a lógica de uma cota que lhe desse alguma preferência por ser negra ou pobre, com tantos brancos de classe média que suavam para tirar 70.

Ambos passaram no vestibular com um pé nas costas, anos depois.

Para ser mais exato, Adriana e Urandir ainda precisariam subir um pouco na escala social para alcançar o padrão de vida dos coleguinhas pobres da classe. E as precárias condições dos dois estavam a anos luz das dos alunos de classe média, uma minoria composta de filhos de professores, funcionários públicos, engenheiros, prósperos comerciantes ou pequenos industriais. Mas todos sentavam juntos nas cadeiras das mesmíssimas salas de aula do CTN, um colégio que tinha fama de ser o melhor da cidade.

Observando o panorama educacional de hoje, torna-se quase impossível acreditar que eles, e tantos outros, negros, brancos e mulatos, pobres, desprovidos de bolsas, cotas, patrocínios ou benfeitores, pudessem ter estudando numa escola tão bem equipada quanto alguns dos melhores colégios particulares atuais. E, mais ainda, disputando os postos de melhores alunos com filhos de classes média, sem que a cor da pele e a classe social representassem qualquer vantagem ou impecilho nas suas performances nas salas de aula, no campo de futebol ou na quadra de esportes.

Ao contrário da política educacional de hoje, a ênfase estava na qualidade, em detrimento da quantidade. Mas a população ainda era pequena e sempre sobravam vagas para que muitos bons alunos, filhos de gente pobre, aproveitassem a oportunidade de entrar numa dessas escolas de excelência.

Aparentemente essa política educacional não descuidava também dos professores, que chegavam à escola cada um em seu carro (um luxo para poucos, em 1970), vestidos com guarda-pós impecavelmente brancos. Eram respeitadíssimos por pais e alunos e bastante motivados. Entravam na sala para realmente dar aulas e as faltas eram raríssimas.

O alto nível de exigência para aprovação só deixava como alternativa aos alunos estudar para valer, tirando o máximo proveito da ótima qualidade dos professores. Afinal, a ameaça de reprovação estava logo ali, na esquina da nota 70, e era tida como uma vergonha insanável. Ainda mais que alguns professores incentivavam abertamente um certo espírito de competição, tanto internamente como entre as turmas “G”, “H” e “I”, todas de 2º ano. Certo ou errado do ponto de vista didático, o fato é que o medo da reprovação contribuia muito para que as notas altas surgissem com bastante frequência.

Porém, nada explicaria melhor essa boa performance do que o fato de todos terem cursado antes o primário em escolas públicas de boa qualidade.

Alunos não tão bem sucedidos, ou mais preguiçosos, preferiam se contentar com escolas menos exigentes, onde o risco de reprovação era um pouco menor, apesar de que ainda poderiam ser consideradas muito boas, se comparadas com a baixa qualidade de suas congêneres atuais. Quem tinha algum dinheiro podia recorrer aos poucos colégios particulares, apelidados pejorativamente de “papai-pagou-passou” pela molecada das escolas públicas.

Mas, pelo menos no rico Plano-Piloto, existiam alguns excelentes colégios particulares. Porém, a procura por eles era bem menor do que acontece atualmente, pois não apresentavam grande vantagem comparativa no tocante ao sucesso no vestibular da UNB, que sempre divulgava uma lista de aprovados recheada de alunos das boas escolas públicas.

Curiosamente acontecia com a maior naturalidade o relacionamento em sala de aula ou no recreio entre os alunos “remediados”, os de classe média e aquela “gente diferenciada”, que mal tinha o que comer em casa. As diferenças sociais simplesmente passavam batido, quase imperceptíveis, dada a inocência daqueles alunos, que conviveram desde o 1º ano, até completarem o 4º ano do ginásio. Além de parecer pouco importar, a classe social não era tão facilmente identificável atrás do uniforme, já que o consumismo escolar das mochilas bonitas e dos tênis de marca ainda não existia. No campo de futebol, ou na sala de aula, o que importava mesmo era se o sujeito era craque ou não, fosse ele branco, preto, rico ou pobre. E não causava espécie se o filho do dono da loja famosa acabava se saindo mal nas provas, ou se Adriana, a vendedora de churrasquinhos, tirava as melhores notas da Turma “H”, maiores até que as do ruivinho, tremendo CDF, filho do dono de uma pequena indústria, que morava num sobrado bonito.

Tanto o ruivinho quanto o filho do servente de pedreiro, que nunca eram escolhidos para formar o time de futebol, por serem tremendos pernas-de-pau, eram disputados ferrenhamente pelas equipes das gincanas de ciências, matemática e geografia. Naquele ambiente de oportunidades iguais, a cor do boletim não era condicionada pela cor da pele ou pela classe social. O que não significa que às vezes não se praticasse o hoje chamado bulliyng, contra gordinhos, baixinhos ou negros. Mas nada tão grave a ponto que que não pudesse ser resolvido por uma boa briga na saída.

Ah, sim, a merenda! Fundamental! Provavelmente boa parte daqueles pequenos cérebros não teria como funcionar a contento apenas com a modesta alimentação servida em casa. A farta e razoavelmente saborosa merenda escolar supria qualquer desnutrição dos mais pobres e trazia também para a fila os mais favorecidos pela sorte. A macarronada, então, era realmente imperdível.

Os pobres, tanto negros, quanto brancos e mulatos, bem como seus coleguinhas de vida mais folgada, só escolhiam estudar num colégio como o CTNpor terem disposição para encarar uma escola onde o fracasso em atingir nota 70, em todas as matérias, todos os meses, os faria enfrentar uma mortífera prova final. Talvez esse sentimento de igualdade no campo intelectual possa explicar a inexistência de animosidade contra alguns mais endinheirados, como o gordinho filho do dono dos armazéns atacadistas.

Após comer e repetir até na fila da nem tão deliciosa sopa de grão de trigo, ele ainda costumava esbanjar dinheiro comprando na cantina um ambicionado sanduíche de queijo com mortadela, acompanhado de Coca-Cola bem gelada. Porém, o que contava mesmo era que o gordinho era gente boa e craque no futebol de salão. Mas não oferecia nem um pedacinho para ninguém.

A sorte é que havia sempre a esperança de alguém ganhar essa iguaria de graça, pois o professor de matemática, em quase todas as aulas, dava como premio o sanduiche e a Coca-Cola da cantina, para quem resolvesse primeiro o problema especial do dia. Deviam ganhar bem os professores daquela época.

Até hoje resta uma dúvida nessa história do sanduíche, normalmente monopolizado pelos craques em matemática: teria sido a simpatia e a didática do professor, ou o pecaminoso poder da gula, o verdadeiro responsável por um certo escrevinhador, um tanto avesso à matemática, ter, em várias ocasiões, recebido a premiação? Quando um ou outro mortal ganhava o prêmio, já causava espanto. Mas foi considerado quase inacreditável alguém derrotar tantas vezes seguidas Urandir e sua gang de matemáticos bagunceiros, Geraldo “Cara de Índio” e Vicente “Branquelo do Pum”, os maiores frequentadores da cantina.

Aproximadamente uns 20% dos alunos das sala “G”, “H” e “I”, pobres ou não, negros ou brancos, costumavam ter média anual muito próxima muito próxima de 100. A mesma diversidade estava presente na turminha intermediária, das notas 75 a 80 e na daqueles que se esforçavam para atingir o mínimo de 70, o que também não era fácil. A lista de reprovados era pequena, mas sem qualquer discriminação de cor ou situação econômica.

A qualidade de ensino era a mesma, ou provavelmente maior, nos bem equipados e famosos Elefante Branco e CASEB, os dois prestigiados colégios públicos, situados quase lado a lado na Asa Sul do Plano-Piloto. A única diferença é que os alunos pobres, que estudavam juntamente com filhos de políticos e de altos funcionários, estavam em minoria. Entre esses mais pobres figurava o futuro Presidente do STF, Joaquim Barbosa. No time dos que já nasceram ricos, Fernando Collor de Mello, o piloto Nelson Piquet, o ex-governador do DF Paulo Otávio, o ex-senador Luiz Estevão, além de talentos como Renato Russo e Zélia Duncan. Provavelmente por terem estudado em épocas diferentes, na memória dos peladeiros não há nenhum registro de alguma entrada dura do craque de bola Joaquim Barbosa nas canelas do atlético Fernando Collor.

Quanto aos alunos mais pobres do CTN, muitos, entre os melhores, infelizmente tiveram que renunciar à universidade. Tendo frequentado ótimas escolas no primário, ginasial e segundo grau, eles não teriam grandes dificuldades para passar no vestibular. Mas a barreira era outra: a prioridade era trabalhar, para sobreviver e também para ajudar o resto da família. A opção da faculdade noturna se mostrava inalcançável, devido ao alto preço das mensalidades. Mesmo assim, alguns poucos conseguiram milagrosamente terminar um curso superior.

Do risonho Urandir, o que se sabe é que foi obviamente aprovado no vestibular da UNB. Difícil é imaginar como ele conseguiu frequentar um curso diurno. Talvez trabalhando à noite. Adriana se virou de alguma maneira e também terminou a universidade. Passou em concurso do judiciário e migrou para a classe média alta. Hoje mora num lindo casarão. O que não se sabe é se os filhos dela, que só devem ter visto pobreza pela TV, foram beneficiados pela cota racial, direito inalienável para os que hoje têm a pele negra, como eles. De uma maneira ou de outra, alguns bons alunos pobres daquela época acabaram se formando na universidade e conseguindo romper o círculo vicioso da pobreza.

Pena que essa história não tenha um final feliz. Todas essas excepcionais escolas dos anos 60 e 70, do Plano-Piloto e das cidades-satélites, foram decaindo com o passar do tempo. Mantiveram um nível apenas razoável nos anos 80 e, hoje, mais parecem sucatas abandonadas, frequentadas apenas pelos mais pobres, formando alunos que terminam o 2º grau ainda com dificuldades de leitura. Contudo, o governo tem atuado prontamente sobre o problema, proibindo reprovações e oferecendo cotas disso ou daquilo, para que eles consigam vagas preferenciais na universidade ou em concursos públicos.

Já as escolas particulares brasilienses continuam de vento em popa. Provavelmente tendo como alunos até os filhos ou netos de Urandir, da Adriana e de seus colegas mais bem sucedidos. Eles não seriam loucos a ponto de condená-los às escolas do governo.

(*) Luiz Carlos Toledo poderia ter sido um jornalista brilhante; abandonou o chamado do jornalismo e foi mexer com números. Há algum tempo tento trazê-lo de volta às teclinhas. (Sérgio Vaz

Agosto de 2014

4 Comentários para “Uma gente diferenciada, que nunca precisou de cota”

  1. Muito bom Sérgio trazer de volta ás teclinhas o escrevinhador que conseguiu comer sanduiche com Coca-Cola.
    A narrativa é uma constatação terrível, gente diferenciada não necessita de cota. Ontem tirar 70 era para diferenciados, hoje as escolas banalizaram a nota 100, qualquer cotista consegue.
    Ontem minha prima viveu a realidade descrita pelo carioca mais brasiliense do cerrado. Minha prima carioca, filha de funcionário público, foi para Brasília, estudou no CTN, foi para a UNB, formou-se e foi lecionar na Inglaterra. Estará de volta, este mês, mais para rever os amigos de Brasilia do que para rever o velho primo.
    Hoje as escolas mudaram, os alunos são cotistas tiram 100 e se acham com direito a desfrutar de falsa meritocracia. Ontem os jogadores de futebol eram aplaudidos hoje são chamados de macacos.
    Luiz Carlos meritoriamente ganhou o sanduiche e a Coca-Cola.

  2. Luigi, retrato maravilhoso de uma época em que a educação não fazia discriminação racial nem social. De onde venho, as escolas públicas eram as melhores da cidade, com destaque para a querida Escola Estadual de Uberlândia (conhecida carinhosamente como MUSEU), e a Escola Estadual Messias Pedreiro. Infelizmente, hoje o foco é apagar incêndios com a falácia das normas afirmativas, baseadas em famigeradas cotas, sem dar a mínima bola para o MÉRITO.

  3. O sistema de cotas esconde por trás de si uma grande injustiça com aqueles que, anteriormente eram pertencentes aos estamentos sociais menos aquinhoados. Em muitos casos, seus filhos, a muito esforço mantidos em escolas particulares para fazer face à inviabilidade do ensino público na educação básica, obteriam êxito em alcançar o ensino público superior, mas perdem as vagas para os cotistas. É uma ironia os pais substituírem economicamente o poder público na obrigação de dar um ensino de qualidade a seus filhos e serem duplamente punidos ao tê-los preteridos pela aplicação da regra de cotas! É como se o Poder Público estivesse dizendo: “Eu nem te dou uma educação de qualidade, e ainda vou te punir se você fizer isso em meu lugar”!

  4. O sistema de cotas esconde por trás de si uma grande injustiça com aqueles que, anteriormente, eram pertencentes aos estamentos sociais menos aquinhoados. Em muitos casos, seus filhos, a muito esforço mantidos em escolas particulares para fazer face à inviabilidade do ensino público na educação básica, obteriam êxito em alcançar o ensino público superior, mas perdem as vagas para os cotistas. É uma ironia os pais substituírem economicamente o poder público na obrigação de dar um ensino de qualidade a seus filhos e serem duplamente punidos ao tê-los preteridos pela aplicação da regra de cotas! É como se o Poder Público estivesse dizendo: “Eu nem te dou uma educação de qualidade, e ainda vou te punir se você fizer isso em meu lugar”

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