Nasceu descalça. E, descalça, foi condessa, ao lado de Bogart.
Ava Gardner já levava dois casamentos de pavio curto, um de boa cama com o actor Mickey Rooney, outro de divã psicanalítico com o músico Artie Shaw, quando se meteu, ia a noite a caminho da madrugada, no Cadillac de Frank Sinatra.
A vida, nesses anos finais da década de 40, andava a correr mal a Sinatra, e começava a abrir-se em flor a Ava, essa miúda tão indecorosamente bela que quase todos os homens, e algumas deslealíssimas mulheres, queriam levar para a cama.
Frank enfiou o Cadillac pelo Palm Canyon Drive, guiou meia hora, passando terrinhas saloias, Palm Desert, Indian Welles, até chegarem aos semáforos de Indio, aldeola sem história. Por essa altura, já tinham aviado uma senhora garrafa de Beefeater. Beijaram-se pela primeira vez, e era o gin da boca dele a beijar o gin da boca dela. Fartaram-se de gostar. Nunca mais a boca de um havia de deixar de ter saudades da boca do outro e as duas, juntas ou separadas, do pastoso e lânguido gin.
A noite, as estrelas, o deserto pediam, gemiam por excesso. Frank, o escanzelado Frank, meteu a ousada mão no porta-luvas e tirou de lá uma fálica, negríssima, Smith & Weston, uma .38, com viril cheiro a óleo. E é sabido que donde se tira uma, se tiram duas. Estavam, Frank e Ava, no denso e escuro sossego de uma estrada de Indio e cada um tinha uma lubrificadíssima pistola na mão. Começaram a disparar sobre tudo o que acendia e doutra maneira não se apagava, semáforos, luzes, algumas montras de umas lojas rupestres. Esvaziaram o primeiro carregador e, ao segundo, acertaram de raspão num bêbado solitário, o único ser vivo nessas wee wee hours de Indio.
O advogado de Sinatra, com muita pópia e 30 mil dólares, calou a indignação do bêbado de serviço e da ociosa polícia de Indio. Nunca se soube, nem uma linha confidencial nos jornais.
Pólvora nos dedos, ficaram a amar-se perdidamente. Pelo vulcânico, mercurial amor dela, Sinatra tentou até suicidar-se. A doçura que deve ser um tipo suicidar-se pela mulher que, uma noite, em Madrid, veio bater-lhe à porta só com o alvo casaco de arminho sobre o escândalo que era aquele corpo.
Quando a enterraram, na pacóvia Smithfield, na Carolina do Norte, como se repetisse a oração fúnebre de A Condessa Descalça, o severo pastor baptista disse: “Não era uma santa.” Parece e é um elogio.
O que haverá no porta-luvas do Cadillac?
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.