Ainda hoje, a meio de um filme, quando acordo sobressaltado do delicioso embalo de sono de um minuto, fico ali a pensar que estou a ver no ecrã a mais pura realidade, que aquelas sombras não são actores, mas sim pessoas a viver mesmo o que, por isso, tão bem representam.
Vi The Hustler nos anos 60. Não fazia a mínima ideia do que era o “film noir” e ainda menos o que era um realizador, um argumentista. E embora me jurassem, não estava nada convencido de que via no ecrã outra coisa que não o que, espontânea e realissimamente, as personagens viviam.
The Hustler, negríssimo filme de Robert Rossen, foi assim que o vi. Aquilo era o que era: os obscuros e espessos salões de bilhar, tão pouca luz e tanto fumo, o desmesurado existencialismo, o mau álcool, o suor infecto e um medo e uma violência que é um exclusivo do mundo masculino e que nenhuma mulher conseguirá perceber nos dias da sua vida. Um filme era um bocado bruto de realidade.
Foi nesse The Hustler, de muitos losers e pouco ganho, que conheci Paul Newman. A preto e branco, sem ter nos olhos o azul do technicolor desse outro filme em que não conseguia, para desespero dele e de toda a plateia, dar a Elizabeth Taylor o zinco quente que a gata pedia.
Para mim, um filme não podia ser um faz de conta. E volto a The Hustler, à cena em que Paul Newman, jogador atormentado e obsessivo, encontra Piper Laurie, escritora a esconder o desejo de sublime num corpo aleijado. Dois estranhos, fantasmas insatisfeitos, acabavam na cama e ele, na manhã “after”, chamava-lhe Sarah:
Ela: Como sabes que o meu nome é Sarah?
Ele: Disseste-mo tu.
Ela: Menti-te. Quando estou bêbada, minto.
Ele: Ok, então como é que é o teu nome hoje?
Ela: Sarah.
Diziam este diálogo e eu achava que o viviam, que ninguém o escrevera, e que tinham estado na cama antes e bêbados toda a noite. Na displicência de meia-dúzia de palavras, da boca de Newman e Laurie saía um mundo de desencanto, uma angústia existencial que eu andava a ler na Náusea de Sartre, mas que só agora me invadia o corpo, autorizado que fora a entrar no quarto sórdido, a sentar-me ao lado da cama deles, o cheiro do sexo alheio a vir-me ao nariz.
Quando fui a The Hustler não fui ao cinema, fui à vida.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.