Um belo fruto tropical

No outubro de 1986 as águas haviam baixado com o fim das chu­vas, depois do inverno rigoroso daquele ano acima da linha do Equador. Embora o céu ainda carregasse suas nuvens para lá e para cá, ora fechando, ora abrindo, o verão tropi­cal foi chegando. Hora de o Cauamé, esse mignon afluente do Rio Branco, que deságua nos braços de Boa Vista, fazer despontar suas praias com­pridas e estreitas.

A temperatura subira bem acima dos 30 graus e toda a cidade começou a ir para o banho, num autênti­co festival de farofeiros. Ao longo das mar­gens, nas proximidades da ponte da rodovia BR-I74, no trecho que liga o Brasil à Venezuela, insta­lavam-se famílias inteiras sob os capões de buritizeiros, bacabais e moitas de inajá. Para quem gosta de tranquilidade, o melhor mesmo era ir logo depois de meados de setembro, quando as praias ainda eram poucas e os farofeiros idem. No máximo até fins de outubro, porque a partir de novembro e até abril, a turba não deixava espaço. Além do estrago no visual, havia a poluição sonora, onde gritavam desde forrós com refrãos interminavelmente repetitivos até imbecis conjuntos de rock pauleira para quem tímpano devia ser palavra desconhecida. A qualquer hora e em qualquer tempo não há natureza que aguente. Nem a ecológica nem a humana.

É por essas razões que eu gostava de aproveitar as tardes de sábado, pois aos domingos, por conta desses incômodos, já ficava mais difícil pegar os guris cá de casa e sair rumo ao Cauamé.

Quando a gente ia era tudo na simplicidade: varas de pesca, iscas, algumas cervejas e refrigerantes, um livro e o velho calção de banho. Do pé da ponte descíamos com o carro pela estradinha no meio do areal que ia dar num recanto mais abaixo. Ali, as horas voavam, entre uma fisgada e uma soneca, entre umas páginas e a contem­plação,

Numa das primeiras tardes de verão, quando agosto já fora empurrado por setembro pra fora da folhinha, acomodei-me sob a som­bra de um pé de caçari e mesmo dian­te dos protestos de um melro barulhento, pre­parei-me para a modorra sabatina. Os meni­nos os havia mandado numa excursão em busca dos mistérios escondidos na mata ao redor. Foram e me deixaram ali, go­zando o silêncio, quebrado tão-somente pelo piar dos pássaros, o marulhar das águas acariciando as pedras da corredeira ou o salto pranchado do tucunaré no meio do rio.

Foi então que eu a vi. Acima, à esquerda, uma faixa de praia esten­dia-se branca e limpa, ainda livre dos faro­feiros. E por esse tapete ela veio desfilando, graciosa no andar, saltitando às vezes, ou passeando uma leveza de fada, gingando o corpo amorenado, coberto apenas por uma tanga.

Esqueci o pacu que teimava em morder a isca. Minha atenção era toda dela. Comecei a imaginar quem poderia ser. Cabelos negros, presos nos lados por duas marias-chiquinhas, franjinha na testa. De vez em quando volteava sua graça num rodopio de bailarina. Só podia ser de fora, pois fugia a todos os padrões locais. Talvez, pela ousadia do traje, pudesse ser de uma capital do Sul, do Nordeste, sei lá.

Feito espião, me encolhia ainda mais entre as ramas, com medo de ser descoberto. Não queria quebrar o encanto, mas ela perce­beu-me. E não fugiu. Sorrindo, numa descontração que misturava alegria e tranquilidade, foi chegando, chegando e a parte portuguesa do meu sangue ferveu. Parou no fim da praia, em frente ao remanso. Num meneio gracioso com a cabeça, deixou escapar uma nota musical, macia, suave, ca­tivante:

– Oi.

Devolvi-lhe um oi trêmulo, grasnado, idiota. Foi então que caí na realidade. Não vinha de nenhuma capital, de nenhuma civili­zação. Era produto tropical, uma espécie de Pocahontas macuxi. Seu nome? Lindalva, 16 aninhos, que morava na maloca da Malacacheta, 16 quilômetros a oeste de Boa Vista.

Mas por que a tanga tão ousada? Sua resposta foi a mais bem dada bordoada que a minha burrice já levou:

– E índio usa o quê?

De Gaulle tinha razão: Cabral não era um homem sério…

Plínio Vicente publica semanalmente suas crônicas no Jornal de Roraima.

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