Jorge de Sena dizia que, por vezes, os franceses nos tiram o ar todo com um sublime soco no estômago. Falava de literatura e poderia muito bem estar a falar da beleza celerada de um verso de Rimbaud. Pego-lhe nas palavras para começar a falar da beleza celerada de Paul Gégauff, poeta dos argumentos dos filmes da Nouvelle Vague que construíram o torpe imaginário da minha geração.
Estão a ver o Belmondo de À Bout de Souffle? É ele, Paul Gégauff, copiado, cuspidinho. Quanta inquietação da Nouvelle Vague não é inquietação deste Gégauff, deste François Villon dos anos 50 e 60, canalha e libertino, amante de noites a arder em álcool puro e carne fresca?
A história da Nouvelle Vague é a história de amor de Godard, Rohmer, Chabrol, Truffaut e Rivette. Nessa história, Gégauff é a espada de ódio que corta a direito, anarquista de direita, para não dizer facho, onde os outros se andavam a roçar pelas coxas mal abertas da esquerda. Se fosse o próprio Gégauff a dizê-lo, teria de escrever aqui, o que não farei, que ele se estava a cagar para os “Cahiers du Cinèma” e para a revolução desse bando de “frustrados sexuais”. A Rohmer, a quem inspirou o Jêrome de Le Genou de Claire e o Henri de Pauline à la Plage, Gégauff tratava-o por “le grand Momo” e dizia que ele era um asceta fechado num quarto de criada, sonhando ter ao colo umas meninas a que pudesse dizer coisinhas lúbricas. Chamava a Godard o “Dostoievski de Lausana”. Insultava Truffaut: “Tu não existes, pá, tu não existes!”
Entendeu-se com Chabrol “o sonolento”. Escreveu-lhe os argumentos provocadores e insolentes de Bonnes Femmes e de Les Godelureaux. Na rodagem de Les Godeleraux foge, para se casar com a primeira mulher que por sua vez fugirá com um produtor. Faz tudo para que ela volte e chapéu. Chabrol contará a história em Une Partie de Plaisir, com os dois ex-amantes a fazer os próprios papéis. Conhece, depois, Coco, mulata linda, pai da ilha de Reunião e mãe da Noruega. Ela bem avisou: “Tu és demasiado velho, eu sou demasiado nova.” Os ponteiros deles não batiam certo, um tinha-os na meia-noite, o outro nas seis da tarde. No Natal de 1983, com exasperada e sacana ironia Gégauff disse-lhe: “Mata-me se quiseres, mas pára de me foder o juízo.” Coco, com três facadas, arrumou o assunto e arrumou esta crónica.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na foto, Paul e a primeira mulher, Danielle, em Une Partie de Plaisir, de Claude Chabrol.